Ou as peripécias de um curioso músico baiano pelas noites de Porto Alegre
No começo da década de 50, o melhor conjunto vocal em terras brasileiras se chamava Quitandinha Serenaders. O grupo nasceu pelas mãos do lendário produtor musical Carlos Machado, e era formado, em sua maioria, por gaúchos. Ele os batizou assim quando elas cantavam no também lendário Hotel Quitandinha, em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, no tempo em que o estabelecimento era um cassino (os cassinos foram fechados durante o governo Eurico Dutra, em 1946). O fim da jogatina transformou o fumacento cassino em um hotel sóbrio. O conjunto deixou Petrópolis rumo às boates do Rio de Janeiro, mantendo o mesmo nome.
O grupo era formado pelos gaúchos Luís Telles, os irmãos Paulo e Alberto Ruschel (ator do filme O Cangaceiro), Francisco Pacheco e Luís Bonfá (pai de Marcelo Bonfá e autor de clássicos como Gentile Rain e Manhã de Carnaval).
O líder era Luís, homem bondoso e timorato. Morando na capital federal, Telles participava do ambiente musical daquele tempo, da boemia carioca e, como não poderia deixar de ser, a rádio Nacional. Também conheceu grandes figuras da época: Assis Valente (Brasil Pandeiro), Paulinho Tapajós, o estreante João Donato (de A Rã) e Bororó, entre outros.
Um dia, ele conheceu um jovem de vinte e quatro anos, chamado por todos como Joãozinho da Bahia. Joãozinho era um guri contemplativo, muito sensível, tinha excelente memória musical e tocava violão. Através de amigos, descobriu que o rapaz não tinha dinheiro, nem trabalho e poucos amigos.
Andava pelas boates de Copacabana, mas não entrava nelas (não tinha dinheiro). Ficava na calçada mesmo, cabelos quase caindo nos ombros, barba de semanas e roupa amarfanhada. Não podia voltar para casa, não conhecia ninguém que morasse em outra cidade.
O músico dos Serenaders descobriu também que o estado de Joãozinho era devido ao uso constante de maconha, que era fartamente distribuída pelas noites cariocas. Decidiu tirar o menino daquela situação terrível, levando-o para conhecer os ares de Porto Alegre, da próxima vez em que fosse desembarcar na capital gaúcha.
Também convidou o rapaz para participar do Quitandinha, embora ele nunca fosse realmente um membro do grupo. Também conseguiram para o baiano um teste de voz e um contrato num clube noturno, mas ele recusou ambos, mais por ser tímido e exigente demais.
Acabou ficando todo o começo de 1955 em Porto Alegre. Luís Telles hospedou o guri no luxuoso Majestic (hoje tombado como centro cultural). Tão logo se adaptou ao hotel, Joãozinho começou a chamar a atenção de mensageiros, telefonistas, camareiras, hóspedes e até os proprietários do lugar.
Todos ficaram encantados coma sua fineza e com o seu talento ao arranhar, distraído, um violão. Telles também arrumou apresentações perto dali, no bar Farolito, na mesma rua do Majestic, numa esquina da avenida dos Andradas. Levou o menino também ao Clube da Chave que, na época, era bastante freqüentado por não ser um bordel, como a maioria dos inferninhos existentes na capital.
Com o tempo — e por causa de Luís, todos na cidade o chamavam, simplesmente, de Joãozinho. Um dia, João não quis tocar. O violão emprestado tinha cordas de aço. Aturdidos, fizeram uma vaquinha e lhe arrumaram outro, novamente reprovado pelo jovem baiano. Com o novo “pinho”, desta vez, aprovado pelo guri, Telles levou o músico iniciante por todos os lugares: em programas de auditório, botecos do Mercado Público e o afamado (termo que se dizia então) Clube do Comércio, que era freqüentado pela fina flor da boemia bem vestida de Porto Alegre.
Magérrimo, quase alto, quase médio, já sem aquele cabelo de esquizofrênico e barbas de poeta beat, o baiano dormia muito pouco. Passava o dia no quarto do hotel, tocando violão e comendo bergamota (tangerina). As arrumadeiras do Majestic sempre se deparavam com inúmeras cascas da fruta pela cama.
Tontas, descobriram que se tratava de um padrão: todo dia ele fazia isso. Achavam que o hóspede estava ficando maluco, mas ele explicou, depois.
Ele colocava as casquinhas ali para que as formigas viessem lhe fazer companhia. Todo fim de tarde, vestia o seu único e fora de número (curto demais) casaco (na verdade, um sobretudo Príncipe de Gales emprestado por Telles ao seu pupilo) para se apresentar ou encontrar conhecidos, quando a boca-da-noite se abria nas portas de vai-e-vem dos bares.
Quando precisou de um smoking, lhe conseguiram um — curto também. Ao se ver no espelho, apenas disse:
— Rui Barbosa...
A opinião dos seus ouvintes era sempre a mesma. O jovem demonstrava ser um virtuose em seis cordas, e conhecia uma quantidade exorbitante de músicas — algumas conhecidas, outras nem tanto, em sua maioria compostas por seu ilustre patrício, Dorival Caymmi. Contudo, a platéia não entendia como ele era capaz de descaracterizar as notas coloridas e dissonantes do violão de forma tão singular quanto inédita, naquele lugar.
Alguns especialistas e conhecedores de música, como o pianista Armando de Albuquerque, notaram que ele tocava sob influência de um ritmo que era estranho aos ouvidos brasileiros: parecia um misto de Stravisnky com Be-Bop. Se Joãozinho decidisse tocar uma de suas preferidas, “A Primeira Vez” (Bide-Marçal), sucesso de Orlando Silva, ou “Eu Sonhei que Tu Estavas Tão Linda” (Lamartine Babo), o resultado era algo muito diferente e mais intimista do que as originais. Mesmo criticado, ele conseguiu um fiel grupo de admiradores.
Falando em Orlando Silva, ao contrário do seu ídolo, Joãozinho tinha uma voz diferente do “Cantor das Multidões”, embora ainda guardasse ecos ao que se refere à empostação e os vibratos muito bem cuidados. Sempre precisava de microfone, mas não mudava a emissão de voz, sempre pequena, baixa, calculada, sem emoções exacerbadas, mesmo nos momentos cruciais. Às vezes, arriscava um Augustin Lara (“farolito que alumbras somente mi calle deserta”) arranhando um espanhol incompreensível de tão abaianado.
O acento nordestino do rapaz também era o algo a mais que o transformou numa pequena lenda pelas noites da capital gaúcha em meados dos anos 50.
Tempos depois, o baiano Joãozinho sumiu, de forma tão discreta quanto apareceu pela primeira vez aos olhos do pessoal do Clube da Chave, num longínquo janeiro de 1955. Seus amigos se espantaram com a ausência repentina. Nunca mais se ouviu falar do lendário jovem do nordeste, que encantava a assistência dos botecos de Porto Alegre como um Paganini em voz e violão. Nunca mais se soube que fim tivera o guri de Juazeiro, de sotaque peculiar e de modos esquisitos. Eventualmente, ele aparecia em rodas de conversa, no Largo dos Medeiros, no Centro, em frente à antiga Confeitaria Central. Perguntavam sobre Joãozinho.
Alguém ao ouviu falar a quantas anda o Joãozinho? Nada, ninguém sabia o que aconteceu com ele.
Em meados 1958, alguém jurou ter escutado uma voz parecida com a do violonista baiano. Entrou na loja de discos e reconheceu o mesmo rosto, num disco que fazia o maior sucesso no centro do país. Um grupo de admiradores de Joãozinho se amontoou na vitrine. Ouviam, reouviam, se entreolhavam, e não sabiam se acreditavam: é ele? Pediram para ouvir o 78 rotações, com cuidado. Ao prestarem atenção na batida sincopada do violão, a mesma divisão de frases. Todos foram unânimes. Era Joãozinho mesmo. O que os confundiu foi que o intérprete do disco de selo Odeon se chamava João Gilberto, “com Antônio Carlos Jobim e Orquestra”.
João posando com o pulôver de Ronaldo Bôscoli...
O disco era Chega de Saudade, cujo lado B era “Bim-Bom”, e que lançou a Bossa Nova.
Texto meu publicado pelo site Rabisco, há algum tempo atrás. Aproveito para repostar agora, que faz meio século do lançamento desse disco, que é básico em qualquer discoteca embora, infeliazmente, só possa ser achado na Internet.
Falando nisso, link nos comentários...
Um comentário:
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Créditos: Loronix
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