domingo, 28 de março de 2010

A Jukebox de John Lennon


A Capa

Certa vez, eu vi um trecho de documentário no Youtube onde aparecia o criador do Lovin' Spoonful, John Sebastian, falando sobre a música Do You Believe In Magic e da relação dele com a música dos Beatles. Achei muito interessante, mas nunca parei para pensar do que se travava. Tempos depois, o site indisponibilizou o trecho do vídeo.

Esses dias, navegando na Internet, eu descobri de onde saíra aquele excerto de documentário: é uma produção de 2004 para o The South Bank Show, um programa de cultura produzido pela ITV de Londres. Aqui está a íntegra, que foi ao ar, na época:



A história é bastante curiosa: em 1965, o beatle John Lennon comprou uma jukebox portátil (uma espécie de Ipod do tempo das cavernas), com capacidade para quarenta compactos. Sempre que ele viajava ou saía em turnê, ele a carregava consigo. Um dia, ele se desfez dela e o aparelho — uma Swiss KB Discomatic — viajou mundo, até parar num leilão. Um colecionador, John Midwinter, produtor musical de Bristol, adquiriu a relíquia.

No fim da vida, ele desejou que a jukebox virasse tema de algum documentário. Dois produtores da ITV se encarregaram do projeto, Steve Jansen e Malcolm Gerrie. A idéia era pegar os quarenta singles que Lennon sempre escutava, a fim de analisar tanto o que o guitarrista dos Beatles apreciava naquele momento quanto para observar como o seu eclético gosto musical, que ia de Soul a R&B e rock dos anos 50 — e como esse gosto se refletia de forma seminal em sua criação artística.

A produção correu mundo para encontrar quem estava envolvido — dirertamente ou não, como Sting, por exemplo — com boa parte daquelas canções. Acharam de Jerry Leiber a Mike Stoller até Fontella Bass, Little Richard, Donovan, John Sebastian, Gary U.S. Bonds, Bobby Parker e Bruce Channel.

Desta forma, cada um respectivamente recebia a jukebox, no melhor estilo capelinha de condomínio, e aquilo gerava um fluxo de consciência que os permitia refletir sobre os bastidores daquelas gravações, seu contexto histórico/musical. As histórias são interessantes.

Por exemplo, Warch Your Step, de Bobby Parker, influenciou o criador de Help! no riff de I Feel Fine e no de Day Tripper. A harmônica reinitente de James Ray em If You Gotta Make a Fool of Somebody ou a de Bruce Channel em Hey Baby influenciou os Beatles em temas como Little Child ou Love Me Do.

A predileção de John por Turquoise, de Donovan (que está na juke), o fez se interessar por uma técnica mais acurada de fingerpicking no violão folk, e isso é visível no seu trabalho acústico no White Album, nas faixas Dear Prucence, Happiness Is a Warm Gun e Julia.

Assim como a maioria dos jovens ingleses do começo dos anos 60, mais especialmente os mods, Lennon se interessava por soul. Por conta disso, muito do acervo da Swiss KB Discomatic do ex-beatle é dedicado a discos da Stax e da Motown. De southern soul, ele tinha predileção por Booker T And The MCs, também por Wilson Pickett e Otis Redding. Os Beatles chegavam a fazer jams ao estilo dos MCs e isso é evidente na obscura 12-Bar Original (aparece no Anthology 2, de 1996), de 1965, que é uma paródia um tanto convincente de Green Onions, clássico de Booker T.

Da Motown, é possível observar que John era fascinado por Smokey Robinson e os Miracles (os Miracles foram o primeiro conjunto da Motown a lançar um elepê pela gravadora, e é representa a primeira geração do soul) e Marvin Gaye (que era músico de estúdio deles antes de se lançar solo em êxito, em 1962), além de Barret Strong — o criador de Money, o primeiro grande sucesso do selo de Chicago, no fim dos anos 50.

Money (que está na jukebox), como se sabe, era o cover preferido de 9 entre 10 bandas de Liverpool, e os Beatles estavam na lista; tanto que a gravaram, no With The Beatles, de 1963, que é, com efeito, o álbum da banda que tem mais influência desse material que Lennon ouvia.

A questão crucial é que, como muitos como Gary U.S. Bonds e Bobby Parker ficavam assombrados com o fato de que a maioria desse material de Rythym'n Blues americano, como Pickett, Timmy Tucker, Timmy Shaw (que constam no acervo de John) tocavam estritamente em rádios negras e não tinham visibilidade o suficiente para chegar aos ouvidos dos jovens britânicos. Ou seja, era curioso como, a despeito disso, essa nova música tanto chegava quanto fazia a cabeça da moçada inglesa.

E mais precisamente a de Liverpool, que tinha acesso aos discos porque esse material era contrabandeado e vendido nos cais da cidade desde os anos 50. John dizia que discos de Larry Williams (John era louco pela música dele, como se sabe), Little Richard, Gene Vincent (que aparece com o single Be-Bop-A-Lula), Elvis, Buddy Holly (que aparece na jukebox com Richard e Williams).

Mesmo contra a direção musical dos meios de comunicação em geral, foi justamente esse tráfego cultural Estados Unidos-Liverpool que permitiu que aparecesse a cena musical naquela cidade: enquanto o rock morria na América, ele renascia na Inglaterra, através daquele scompactos, que eram avidamente disputados.

Lennon também ouvia seus contemporâneos: deles, além de Donovan, aparecem Animals (Bring It On Home to Me), Isley Brothers (de onde sairia Twist And Shout), Contours, Paul Revere And The Riders, Bob Dylan (Positively 4th Street) e dois singles do Lovin' Spoonful: Do You Believe In Magic e Daydream. Outra citação interessante é o Big Three, que transformou Some Other Guy (Leiber-Stoller) em coqueluche nos pubs de Liverpool. Os Beatles cansaram de tocá-la no Cavern, e existem gravações dela — porém Leiber confessa não ter ouvido a versão dos fab-four.

Esse é o trecho que eu havia assistido do documentário: Sebastian comenta também era influenciado por soul porque, segundo o líder dos Spoonfuls revela que a introdução de Do You Believe In Magic é uma brincadeira em cima do começo de Heat Wave, da Martha Reeves And Vandellas! A comparação, que aparece na edição do vídeo, é perfeita de tão engraçadíssima.

Sebasatian, que também fala sobre Dylan, confessa que nasceu no coração do Village quando ocorreu a efervescência cultural do renascimento do folk, com os jovens que redescobriam os antigos menestréis do passado e reproduziam aquelas canções nos bares do bairro nova-iorquino e em Washington Square. Ali Dylan musicalmente nasceu, com Joan Baez, Jim Kwensky, Mamas And The Papas e tantos outros, que formaram uma geração de cantores/compositores que também influenciaram naturalmente os Beatles e se tornaram autores de suas próprias músicas.

O documentário se perdeu e reapareceu na Internet. Em 2004, a Virgin Music lançou um CD duplo com as famosas 40 canções que John Lennon carregava consigo em sua Swiss KB Discomatic. A lista das canções, que é memorável, é essa:

1. "In the Midnight Hour", Wilson Pickett
2. "Rescue Me", Fontella Bass
3. "The Tracks of My Tears", Smokey Robinson and the Miracles
4. "My Girl", Otis Redding
5. "1-2-3", Len Barry
6. "Hi-Heel Sneakers", Tommy Tucker
7. "The Walk", Jimmy McCracklin
8. "Gonna Send You Back to Georgia", Timmy Shaw
9. "First I Look at the Purse", The Contours
10. "New Orleans", Gary U.S. Bonds
11. "Watch Your Step", Bobby Parker
12. "Daddy Rollin' Stone", Derek Martin
13. "Short Fat Fannie", Larry Williams
14. "Long Tall Sally", Little Richard
15. "Money (That's What I Want)", Barrett Strong
16. "Hey! Baby", Bruce Channel
17. "Positively 4th Street", Bob Dylan
18. "Daydream", The Lovin' Spoonful
19. "Turquoise", Donovan
20. "Slippin' and Slidin'", Buddy Holly

Disco 2

1. "Be-Bop-A-Lula", Gene Vincent
2. "No Particular Place to Go", Chuck Berry
3. "Steppin' Out", Paul Revere & the Raiders
4. "Do You Believe in Magic", The Lovin' Spoonful
5. "Some Other Guy", The Big Three
6. "Twist and Shout", The Isley Brothers
7. "She Said, Yeah", Larry Williams
8. "Brown Eyed Handsome Man", Buddy Holly
9. "Slippin' and Slidin'", Little Richard
10. "Quarter to Three", Gary U.S. Bonds
11. "Ooh! My Soul", Little Richard
12. "Woman Love", Gene Vincent
13. "Shop Around", The Miracles
14. "Bring It on Home to Me", The Animals
15. "If You Gotta Make a Fool of Somebody", James Ray
16. "What's So Good About Goodbye", The Miracles
17. "Bad Boy", Larry Williams
18. "Agent Double-O Soul", Edwin Starr
19. "I've Been Good to You", The Miracles
20. "Oh I Apologize", Barrett Strong
21. "Who's Lovin' You", The Miracles


A duras penas, eu consegui compilar esse disco, que estava inacessível. Inclui nos arquivos Boot-leg, do Booker T (1964), que passa no filme mas não tem no disco, além de algumas canções que John certamente escutava em compacto: Anna, com Arthur Alexander (1962), You Can Depend On Me (1961), com os Miracles, que são os que mais aparecem na coleção do John, e To Know Him Is To Love Him, dos Teddy Bears (1959), música pela qual Lennon era aficcionado, e a gravou ela várias vezes, duas com os Beatles (Decca Tapes e Live at The BBC) e uma, solo (no Menlove Avenue).



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2 comentários:

Anônimo disse...

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Andrea disse...

Obrigada por contar essa história da jukebox do John Lennon e mais ainda por colocar a compilação à disposição. Valeu mesmo.