sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Rocks Off


A capa


No começo de 1970, o consultor financeiro dos Rolling Stones, Rupert Lowenstein, se reuniu com a banda, e anunciou: “acabou o dinheiro, não tem mais dinheiro”. Perplexos, os cinco descobriram que, mesmo faturando alto em concertos e vendas de discos, em seis anos, eles perderam muito mais do que ganharam.

Pior: se somado o montante de despesas, os impostos atrasados e o que lhes esperava no ano fiscal de 1971 (o então primeiro-ministro da Inglaterra, Dennis Healey, preconizava um aumento de taxas para os ricos em cerca de absurdos 90%, o que gerou uma debandada geral), a sua situação com a Coroa Britânica e as contas a pagar iam leva-los à falência em menos de seis meses.

A saída, para Lownenstein, era continuar produzindo discos em escala fordista, sair da Inglaterra e exilar-se em algum paraíso fiscal, e montar uma mega-turnê, onde eles deveriam se apresentar em mega-estádios, de maneira a estancar aquela sangria. O melhor lugar para se realizar uma série de shows daquela envergadura eram os Estados Unidos. O exílio?

Mick Jagger sugeriu Vilefranche-sur-Mer, em Saint-Tropez, na Riviera Francesa.Após o lançamento do álbum Sticky Fingers e de uma turnê britânica “de despedida”, em pouco mais de um ano depois, em abril de 1971, os Stones finalmente embarcaram para o sul da França. Além da bagagem usual, a consorte de Keith Richards, Anita Pallenberg e a futura esposa de Jagger, Bianca, levavam respectivamente seus respectivos herdeiros, Dandelion e Jade. Mas quem estava de fato prenhe — porém de idéias — era Richards.

Há pelo menos dois anos, ele vinha produzindo música à mão cheia — em parte, sobras de discos anteriores, gravados no Olympic Studios, além do material recente, gravado com o auxílio da sua intrépida Rolling Stones Mobile Studio, tendo no volante o não menos intrépido Ian Stewart. O QG musical seria Nelicôte, uma mansão (aliás, durante a segunda Guerra Mundial, Nelicôte se tornou um “headquarters” dos nazistas, durante o governo de Vichy) com ar de vivenda campestre e com vista para o Mediterrâneo.



Com uma vista paradisíaca, um staff de filme de Cecil B de Mille, um invejável recanto para o Verão, além, é claro de heroína e ópio de excelente qualidade, vindo da África, e montantes de cocaína, direto de Estocolmo, e uma adega gigantesca no porão, não havia lugar melhor para os Rolling Stones produzirem a sua obra-prima, o Exile On Main Street.

Lançado em maio de 1972, o disco não foi muito bem recebido, por parecer cru demais, quase uma pré-produção muito mal mixada (Mick Jagger sempre se ressentiu do trabalho de finalização dos tapes, em Los Angeles), como tempo, iria se render ao álbum mais experimental e criativo do quinteto britânico.



Exemplo típico de um trabalho onde se misturam contexto e ambiente propícios, o Exile nasceu para ser eclético, coletivo e épico. Para começar, se o álbum tinha um mecenas, ele era Keith Richards.

Como ele era o anfitrião, todos acabaram tendo que se render ao seu ritmo de vida, aos seus hábitos exóticos e ao seu processo de composição. Claro que isso gerou uma série de problemas que, no entanto, deram o charme fundamental ao Exile.

Sem contar com outro detalhe: em pouco tempo, Nelicôte se transformaria num ponto de encontro de amigos e desgarrados que apostavam em Saint Tropez para uma visita. Já na sua autobiografia, Keith Richards conta que o maior problema era conseguir mander os Stones juntos. Muitas canções acabavam virando esqueletos prontos a serem recheadas a posteriori; outras, com efeito, eram gravadas com Keith e qualquer um que estivesse à mão, Jim Price, Jimmy Miller e seu fiel escudeiro direto de Lubbock Texas, Bobby Keys.

Charlie fez questão de alugar um chatô a mais de 100 cuilômetros de Nelicôte, e se submetia compulsoriamente a fazer a viagem quase diariamente. Mick sentir ciúmes do clã de Richards, mais especificamente de Gram Parsons. "Ele não podia deixar de ser ele o tempo todo", diz o guitarrista, tentanto explicar por que Jagger lha causava mais problema s de ciúme do que qualquer namorada ou até mesmo Anita.



Na maior parte das vezes, a maioria acabava entrando no espírito da coisa, e até participando das improvisadas sessões de gravação.

Em junho, a unidade móvel chegava, enquanto Richards e técnicos de som montavam um estúdio no porão. Como todo começo, iniciar as sessões foi um parto á fórceps. Tudo o que fora outrora planejado foi jogado para o alto. Wyman e Watts apareciam com sua pontualidade britânica, mas tinham que se acostumar com os sumiços repentinos e demorados de Keith. Jagger não conseguia se ficar em Saint Tropez, porque Bianca detestava Anita.



E nem mesmo a natural afinidade entre eles serviu para que as músicas aparecessem. A coisa começou a mudar quando Glyn Johns (produtor e um dos idealizadores do projeto da Rolling Stones Mobile Studio) apareceu para tomar o lugar de Jimmy Miller e, á convite de Richards, Gram Parsons aportou ne Vilefranche-Sur-Mer.

De forma substancial, eles iriam influenciar bastante na sonoridade de boa parte do som do álbum. Parsons, então, que era um dos expoentes do que viria a ser chamado de country-rock, devido ao seu conúbio musical com Keith, naquele momento histórico, depois dos Byrds e dos Flying Burrito Brothers, iria imprimir a sua indelével marca no Exile On Main Street.

Um dos fatores primordiais era o espírito informal das sessões: feito um mecenas, Keith pôde suprir-se de excelentes músicos que lá apareciam. Dessa forma, Nelicôte catalisou musicalmente a música que foi provocado por aquele êxodo involuntário.

Outro notório junkie e seu parceiro de copo e de colher, Parsons virou um meio irmão par Richards (Keith havia dedicado Wild Horses a Gram, que a gravou antes dos Stones, no Burrito Deluxe). Da inspiração de ambos, nasceram alguns dos melhores momentos do disco: entre eles, Sweet Virginia e Torn And Frayed. Tudo, porém, Keef way of life, ou seja, em ritmo de férias. Isso sem contar os constantes problemas com a fiação, que os obrigaram a puxar um gato de energia elétrica da companhia de viação férrea e o calor insuportável do estio francês.

Até a alta temperatura iria influir na sonoridade do álbum: como não havia ar condicionado no estúdio do porão, era mais do que comum que os instrumentos desafinassem sensivelmente, a todo o momento. Isso fez com que muitas das bases gravadas na França soassem fora do tom, e isso pode ser percebido em Casino Boogie e Turd On The Run, por exemplo.

No ápice das gravações, Bill e Charlie desertaram em vários momentos e muita gente, para economizar tempo e dinheiro, acabava passando o veraneio em algum aposento de Nelicôte. E Mick? Radicado agora em Paris, ele aparecia às vezes, quando conseguia uma folga de Bianca, para tratar de negócios e de participar das sessões (embora a maior parte dos vocais fosse gravado apenas nas mixagens finais, nos Estados Unidos) Como até Glyn sucumbiu ao estilo de Keith Richards.

Músicas brotavam; muita coisa nascia do acaso, como Ventilator Blues (parceria com Mick Taylor e cujo nome se explica, em parte) e Happy, uma dos mais simples e geniais números de Keith, e que o acompanharia sempre no palco por anos afora.

Com a quase deserção de Watts e Bill, quem estivesse à mão acabava ocupando a vaga deles (Richards, fulo da vida pelo fato de seu baixista fazer corpo mole e ir tocar com o Manassas de Stephen Stills (onde chegou a compor alguma coisa), resolveu apagar quase tudo o que ele havia produzido em Saint-Tropez). Jagger, porém, vendo que, em pouco tempo, todo mundo em Nelicôte estava ao ritmo de seu irmão Glimmer, resolveu dar um jeito na bazófia. Mandou Parsons embora.

Contudo, as coisas mudaram com o novo contexto: o outono chegou, a mansão havia se tornado num conjunto habitacional, as doideiras de Richards e Anita começavam a chamar a atenção, a polícia e a vizinhança estavam começando a desconfiar daquela trupe de mambembes, os dias passavam mais rápido e o prazo de entrega do futuro álbum parecia estar adiado para o Dia de São Nunca.

O estopim da crise foram escutas que o guitarrista descobriu, em seu telefone, em Nelicôte. Com o ambiente ficando cada vez mais pesado, Keef, que já estava cobrando aluguel de seus hóspedes, dado o tamanho da conta que era sustentar aquela brincadeira, resolve embarcar com os Stones para Los Angeles.

O objetivo era terminar o Exile antes que o contrário acontecesse. Na América, era a vez de Jagger tomar as rédeas do projeto, já que, depois de meses de tanta boleta, Richards não conseguia se concentrar sequer para fazer a slide em Torn And Frayed. Ao mesmo tempo, o contato com o soul norte-americano (e, sem dúvida, a influência seminal de Billy Preston, nessa fase da produção) fez com que o lado de Mick nas gravações se imbuísse dessa virtude.

Muito disso pode ser ouvido em momentos como Let It Loose, Lovin Cup (que, como ocorrera com algumas bases, como All Down The Line, fora iniciada ainda em 1969, no Olympic Studios e, pelo fato de ter sido gravada em parte durante a vigência do contrato dos Stones com a Decca, acabou gerando um litígio interminável entre eles e o ex-empresário, Allen Klein) Stop Breaking Bown e, principalmente em Shine a Light.

Nessa fase, aliás, Mick foi o diretor artístico incansável (em Los Angeles, ele também iria tratar da montagem da turnê americana de 1972, a segunda parte do projeto principal, e colocar todos os overdubs que faltavam nas bases gravadas em Vilefranche-Sur-Mer, durante as alegres férias de Keef & sua turma), suprindo com maestria a carência de seus parceiros com músicos de estúdio. Bill Plummer, por exemplo, fez o baixo em temas como All Down The Line e Rocks Off que, embora tenha sido a primeira a vir á lume, ainda em Saint-Tropez, só foi finalizada em cima da hora.

Outra típica do estilo político (polido) de Jagger é Sweet Black Angel, uma bela homenagem à Angela Davis, uma professora da Califórnia que, ao proteger três fugitivos de San Quentin, virou uma fora de lei. Símbolo de protesto pelos direitos civis na época do surgimento dos Panteras Negras, da escalada da violência nos protestos estudantis, perpretado pela repressão policial, somado ao fato de ser de esquerda e de cor, muitos seguiram sua causa, por a considerarem injustamente perseguida.

Uma vez presa, ela se transformou numa espécie de, mal comparando, uma Rubin Carter de saias. Declarada inocente, em fevereiro de 72, Mick fez questão de colocar Sweet Black Angel no lado B do primeiro single do Exile, Rocks Off, num libelo que é um dos melhores momentos do disco.

Tumbling Dice, o segundo compacto e um dos highlights do álbum (e a cara do Exile), foi concebida durante as gravações do Sticky Fingers, mas da base, montada no porão de Nelicôte, até a mixagem final, é um mash up: o riff é de Keith, Jimmy Miller toca bateria por cima da de Watts, Jagger faz a guitarra-base, Taylor o baixo (Wyman tinha ido embora) e os backing são de Clydie King e Vanetta Fields que, com Shirley Goodman (da dupla Shirley And Lee, lembram?), deram o ar bluesy a várias das canções do disco.



E com Tumbling Dice, agora os Stones tinham um número 1 nas paradas e o ambiente propício para o próximo passo: invadir a América, vender discos, lotar estádios e salvar o leite das crianças.


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sábado, 18 de dezembro de 2010

He Touched Me


A capa

A música spiritual nos Estados Unidos
nunca foi exatamente um gênero à parte, ou relegado apenas à liturgia de celebrações cristãs.

Muito pelo contrário, é um gênero que ganhou proeminência com o advento do disco, a partir da primeira metade do Século passado, influenciou outros tipos de música e se deixou influenciar e ganhou um grande número de diletantes, independente de credo ou religião: o gospel ianque e, via de regra, quase uma instituição cultural, tal qual acontece com o country.

Elvis Presley cantando música religiosa? Sim: é claro e cristalino que ele é, foi e sempre será lembrado como o Rei do Rock. No entanto, as suas raízes musicais,como ele sempre destacou bem, estão cravadas justamente no gospel. Naquele tempo, o formato mais comum no gênero eram os chamados quartetos, isto é, dois tenores, um barítono e um baixo, acompanhados ou não de piano ou banjo.

O gospel branco (ao contrário do”negro”) era mais aberto a variações, e misturavam estilos como o bluegrass e até o jazz. Com o tempo, seria chamado de Southern Gospel.

A partir dali, vários grupos – essencialmente quartetos, como o Statesment Quartet - se destacavam e, a partir deles, alguns cantores partiam para carreiras-solo, como Jimmie Davis e Mark Bishop. Foi à medida que ganhava maior popularidade que o gospel começou a influenciar cantores “seculares”, como Tennesse Ernie Ford (Sixteen Tons) e Patsy Cline (a grande musa do country, do Ole Opry e do Nashville Sound).



E a relação de Elvis com o gospel veio cedo: Gladys Love, sua mãe, se lembrava de vê-lo sair do seu colo ainda pequenino, para ficar do lado do coral e dos músicos, quando eles freqüentavam a Assembléia de Deus em Tupelo, Missouri, onde ele nasceu, em 1935. Já em Memphis, o Rei costumava assistir sempre às apresentações do Statesment.

Presley também tinha uma memória de elefante. Jerry Leiber se lembra de vê-lo citando listas telefônicas de conjuntos gospel, dizendo:”eu conheço todas as canções religiosas que foram gravadas nesse país”. Elvis amiúde tinha o hábito de cantar algo do tipo antes de entrar no palco, desde o começo de sua carreira.

De fato, o gospel sulista comercialmente estava no ápice. Johnny Cash era outro entusiasta do gênero: quando ele fez seu primeiro teste para Sam Phulllps, dono da mitológica Sun, ele entoou um hino numa versão tex-mex. Para se ter uma idéia da popularidade dessa especialidade temática, Phillips rechaçou a música, alegando que aquilo era algo discograficamente saturado no mercado. Ou seja, ele queria um rock’n roll star, não mais um quarteto.

Elvis também acabou sendo rechaçado por Phillips e desencantou como músico de rock. Porém,assim como Cash, ele fez de tudo para poder gravar um disco do gênero. Johnny na Columbia e Presley na RCA.

Quando ele estava no topo da Billboard com Let Me Be Your Tedy Bear, em 1957, o Rei lançou seu primeiro projeto no estilo gospel, o EP (extended play, um compacto com quatro músicas), chamado Peace In The Valley. Na esteira do estrondoso sucesso de Presley, o EP vendeu mais de um milhão de cópias, e até hoje é o recordista no formato.

Contudo, o primeiro álbum essencialmente gospel que o autor de Love Me Tender gravou foi His Hand In Mine, de 1960. Seu empresário, Colonel Tom Parker gostou da idéia, mas não por conta de seus princípios religiosos: ocorre que, afinal de contas, Elvis agora deveria ser moldado como um cantor “família”.

Isso faria com que o tempo sublimasse a sua antiga imagem de The Pelvis e pavimentaria uma bela carreira em Hollywood a partir de então. His Hand In Mine vendeu bem para um disco do gênero, chegando no décimo terceiro lugar no HOT 10 da Billboard.

Na mesma sessão de gravação do álbum, Presley faria (com os Jordinaires) uma versão de Crying In The Chapel que, no entanto, só seria lançado cinco anos depois, em compacto, e chegando ao primeiro lugar depois de um hiato longe do topo, e justamente no auge da Beatlemania, que havia o deixado ligeiramente escanteado.

O sucesso de Crying In The Chapel fez com que ele voltasse a pensar em gravar mais um disco gospel. Em 1967 viria o segundo, How Great Thou Art. Como ocorrera antes, Colonel Parker achou que a idéia viria a calhar por dois motivos: o primeiro é que His Hand In Mine continuava vendendo bem.

E o outro: Parker achava que usando esse foco de canções religiosas, Elvis teria maior visibilidade em rádios do gênero, principalmente durante a Páscoa e o Natal. Além do mais,o disco quebraria uma seqüência de álbuns que eram apenas trilhas sonoras de seus filmes – e Presley estava começando a ficar farto de gravar coisas que ele realmente não queria cantar.
Pois foi isso o que queriam fazer com ele em How Great Thou Art:Seu editor musical (inclusive nos soundtracks), Freddy Bienstock, arranjou um punhado de músicas cujos direitos eram seus e, com efeito, não ia perder a chance de fazer o Rei de galinha dos ovos de ouro dele de novo.

Elvis detestou todas elas e, num curioso ato de insolência, reuniu-se com os músicos e fez uma espécie de enquête com eles, até chegar a um repertório que ele julgasse decente (ele finalmente ia se livrar dos grilhões de Parker e de Bienstock no ano seguinte, quando passou a determinar o que ele deveria ou não gravar, mas isso é outra história). Presley optou por vários temas tradicionais, como In The Garden, Farther Along (que os Byrds gravariam, tempos depois) e Crying in The Chapel, entre outras.

Seu último álbum gospel, He Touched Me, de 1972, foi o mais laureado, mais bem produzido e é considerado por muitos o melhor dos três discos.

Também é o mais eclético: vai da sua memorável interpretação para Amazing Grace, com um comovente coro spiritual até arranjos pop para o hino There’s no God but God e uma baladinha a la Swingle Singers, como A Thing Called Love.
Alguns dos temas de He Touched Me entraram no repertório da turnê de 1972, e foram registradas no conhecido documentário Elvis On Tour, como I John e Bosom of Abraham.

O disco ganharia um Grammy, embora o grande sucesso do ano para Presley foi Burning Love que,aliás, ele detestava. Vá saber.


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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O Canto de Cisne de Lady Day


Lady In Satin

Depois de se livrar de sérios problemas com drogas e a Justiça (mais com a segunda do que a primeira, já que os agentes de narcóticos eram quase como um fã-clube ao contrário, morcegando cada apresentação sua), Billie Holiday conseguiu novas boas vindas ao show business depois do lançamento da sua autobiografia, Lady Sings The Blues, em 1956.

Seu retorno culminou num memorável concerto no Carnegie Hall, naquele mesmo ano. Ao mesmo tempo, ela retornaria ao disco, desta vez pela Verve, a convite de Norman Granz.

No ano seguinte, Lady Day se apresentria em festivais de jazz, como em Newport e uma exitosa turnê canadense. Sua vida sentimental recomeçara também, com o fim de seu relacionamento atribulado com Jimmy Monroe. Porém, havia um outro relacionamento difícil de terminar: a bebida e as drogas continuavam a fazer parte de seu cotidiano.


No fim de 57, Billie rescinde o contrato com Granz e volta à Columbia quinze anos depois (ela gravou o melhor da sua primeira fase no selo, entre 1933 e 1942, até partir para a Decca). A idéia dos executivos era realizar uma mega-produção “no nível da grande estrela que Holiday sempre foi”.

Para tanto, conceberam um disco especial: o repertório iria consistir do melhor da música americana dos tempos do Tim Pam Alley — em sua totalidade, consistindo de números nunca granados por Lady Day — acompanhada apenas e tão somente por um arranjo de cordas, sob a regência de Ray Ellis.

O problema é que, a despeito do fato de que Billie já tinha relativa experiência com arranjos desse naipe, ela sempre foi uma crooner de jazz, isto é, ela iria se sentir menos à vontade londe do seu habitat natural, que era o improviso. Como naquele tempo não havia overdubs, Holiday teria que gravar tudo ao vivo com a orquestra. Por conta disso, tudo deveria ser milimetricamente calculado.

Ou seja: na prática, tudo era muito bonito, tudo era muito bem concebido, tudo era feito na melhor das intenções. Só que, naquela altura do campeonato, quem conhecesse Billie saberia que ela não iria ter o mínimo saco para aquele tipo de metiér — e talvez fizesse de tudo para demonstrar isso...

E foi mais ou menos o que aconteceu. Ao contrário dos velhos serões de jazz, não havia afinidade com os músicos; seu timing era diferente do de Ellis, rigorosamente profissional em seu lavor de joalheiro em lapidar cada arranjo, elaborar cada timbre, moldar cada canção.



Em contraposição ao espartano Ray, Billie esquecia as letras (todos eram inéditas do seu repertório usual), não fazia lá muita questão de decorá-las e, sendo quase uma sexagenária em seus quarenta anos — consumidos em noitadas e bebedeiras — ela já estava na capa da gaita.

O resultado final — Lady In Satin — pode ser considerado como um álbum sui generis na carreira de Holiday. Talvez pelo fato se se tratar de uma incursão de uma cantora de jazz num gênero tão diverso como o easy listening tenha, em parte, a engessado e, ao mesmo tempo, a colocado numa situação diversa.

Billie poderia soar melancólica em alguns momentos em disco, como em Don’t Explain ou God Blass the Child, por exemplo.

Contudo, é difícil explicar a aura soturna que permeia Satin do começo ao fim. Para quem conhecia seu material da Columbia nos anos 30/40, o que vemos agora mais parece o ocaso de uma estrela. Billie exala uma tristeza que os arranjos superdimensionam, desde a sua voz arrastada e carregada de vibratos até o coro feminino que, como observa bem Roberto Mugiatti no epílogo da versão brasileira do Lady Sing the Blues, mais parece “o comitê de recepção ao paraíso”.



Ou seja, Lady In Satin podia ser arrastado para a fácil rotulação de uma produção cheia de clichês — e, de fato, o disco foi descascado pela crítica, que o achou comercialóide demais para uma diva do jazz — se não fosse por Billie. O Penguin Guide to Jazz chegou a dizer que o disco era um “olhar curioso sobre uma mulher vencida”.

As críticas, porém, ficaram divididas: uma facção achava que ela estava na sarjeta. Outra achava que ela havia se redescoberto; sua oz carregada de vibratos exalava uma outra mulher, uma outra cantora, que pairava por cima de todos os pântanos.
Quem primeiro reparou nisso foi o próprio Ray Ellis.



Era como se, ao profetizar o fim, aquilo lhe franqueasse uma aura pessoal de dignidade e, ao mesmo tempo uma absurda vitalidade na forma terna em que ela emposta e coloca a voz, catalisando de maneira inefável os seus sentimentos mais profundos e inescrutáveis de uma forma tão doce e tão dolorosa ao mesmo tempo. “For heaven’s sake, let’s fall in love...”, canta ela.

Anos mais tarde, Ellis revelou que ficou desapontado com a perfornance de Lady Day. No entanto, não deixou de observar que mudou de idéia quando foi mixar os tapes com o produtor, Irwing Townsend:
— O momento mais emocionante foi reouvir a gravação de “I’m a Fool to Want You” — diz ele. — Havia lágrimas em seus olhos.

— Depois que terminamos o álbum eu entrei na sala de controle e escutei todo o material— conta. — Devo confessar que fiquei desapontado com aperformance dela, mas na verdade eu estava ouvindo de forma racional, e não de maneira emocional. Não me apercebi disso semanas depois, quando escutei a mixagem final e então percebi o tamanho de sua atuação como cantora, revela Ellis.

A edição de 2010 da Legacy, que inclui bonus tracks, corrobora tanto a opinião de Ray quanto mostra a dificuldade de lidar com Billie durante as sessões. Em “I’m a Fool To Want You”, ela parece mais bovina a cada take. Em “End of Love Affair” é possível imaginá-la tentando se achar na partitura, errando a letra, ora se impacientando, ora rindo de si mesmo.



Ellis pede para que ela ouça a orquestra e um take aparece na seqüência todo em instrumental, para que ela ouça — tudo era feito ao vivo, fato que, com efeito, aumentava o desgaste entre ela e os músicos. Em determinado take, ela não consegue esconder a raiva. Erra, e depois diz: “que diacho, o que vocês estão fazendo comigo, eu não sou uma prima-dona!”.

A despeito disso, terminadas as sessões de Lady In Satin, entre mortos e feridos, todos se salvaram. Ray e Billie até voltariam a gravar juntos, dessa vez pela Verve, num álbum que seria chamado de Last Recordings.

Aliás, nem todos se salvaram. Billie continuaria como uma pedra a rolar, até vaticinar o seu fim no enterro de seu amigo e amante, Lester Young (com apenas 49 anos), no começo de 1959: “A próxima sou eu”, disse a um amigo, logo depois.


PS: O Lady In Satin foi relançado este ano também aqui no Brasil pela Columbia/Legacy em super áudio, pela coleção 1001 Albuns da CBS




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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Time Of The Season


Capa

— Mas esse disco de vocês é excelente mesmo, hein?

Esse era Al Kooper, o líder do Blood, Sweat And Tears, depois de escutar um acetato do último disco dos Zombies, o Odessey And Oracle.

O que ele não sabia é que quem estava naquela base do sangue, suor e lágrimas mesmo era a turma do Colin Blunstone. Eles estouraram em 1964 num concurso promovido pela London Evening News, que lhes permitiu assinar contrato com a Decca naquele mesmo ano.

No entanto, a concorrência massiva com de bandas britânicas que, com efeito, faziam praticamente o mesmo som, a pressão comercial em bater uma concorrência desleal — num momento em que o grau de sobrevivência de um conjunto de rock residia na sua capacida de em elaborar single de sucesso e a necessidade de fazer sucesso na América faz com que os Zombies fossem paulatinamente subestimados.

Isso a despeito da banda ter sido capaz de lançar compactos de qualidade, como She’s Not There e Tell Her No, a tentativa da gravadora em vendê-los como os Beatles da vez — com Begin Here, na verdade uma coletânea de compactos, dentro da cultura fonográfica da época — acabou resultando em frustração. Os Zombies não foram bem nas paradas já num momento em que a Invasão Britânica parecia dar mostras de que estava sendo superada até por si mesmo.



Dois anos depois, quando a estética musical do rock havia mudado de cena — mais precisamente para a Costa Oeste americana, a British Invasion começava a ficar datada. A falta de perspectiva comercial somada ao retorno inexpressivo em matérias de venda de discos faz com que a Decca se desinteressasse por Rod Argent e companhia.

Em 1967, com seus dias contados, os Zombies assinaram contrato com a CBS. O objetivo era, pela primeira vez, criar um álbum que consistisse apenas de canções inéditas. Por sua vez, o desafio era colocá-los a toda prova como uma banda capaz de realizar um trabalho impecável. O problema? O quinteto iria, de maneira paradoxal, dar o melhor de si numa situação extrema, explorando todo o seu talento num um trabalho independente.



Para tanto, alugou os estúdios da EMI em Abbey Road (seriam os primeiros a realizarem sessões no local sem serem músicos da Parlophone até então) e se dedicaram a compor o que seria o seu “Canto do Cisne” — com a devoção triste de um quinteto de cordas tocando enquanto o transatlântico afunda...

O incrível foi que os Zombies chegaram em Abbey Road e conseguram — mesmo que batendo pé — que os engenheiros de som esperassem antes de recolher o vasto equipamento utilizado pelos Beatles nos estúdios. Vale lembrar que, além do Pepper’s, o local fervilhava com a gravação do Pipes, do Pink Floyd e o SF Sorrow, dos Pretty Things.

Em parte inspirados pelo momento sublime, em parte dispostos a darem o seu melhor, o quinteto colheu a mais bela rescolta de canções que poderiam colher. A despeito da situação falimentar dos Zombies, eles puderam dar um tempo para seus problemas e gravar um álbum como se estivessem no seu auge. Esse carrossel de paradoxos é que transformou o Odessey And Oracle num momento inefável na carreira da banda.



Do ponto de vista musical, o disco entra de cabeça no tipo de pop barroco que floresceu no rock britânico a partir de meados dos anos 60, explorando elementos eruditos, de jazz, vaudeville e de trabalhos corais — principalmente por intermédio de Argent, um pianista de influência erudita. Isso se torna evidante em passagens de harpiscórdio em Care Of Cell 44 (que também não deixa de pagar tributo à psicodelia dos Beatles em Penny Lane ao ao rococó pop de Brian Wilson do Pet Sounds) ou em órgão, como em Beechwood Park.

Contudo, ao contrário de muitas bandas da época, que tendiam a realizar experimentos com Leslie speakers, tape loops, gravações ao contrário, sobreprosições de faixas em overdubs gravados em timbres distintos, música concreta (coisa que os Beatles, os Stones ou o Pink Floyd fariam — quase como precursores do space rock) o trabalho dos Zombies é essencialmente calcado nos arranjos de extremo bom gosto Bem ao estilo Collin-Blunstone, as canções tem a concisão pop no entanto elaboradas com extremo bom gosto, em arranjos complexos e, ao mesmo tempo, acessíveis.

A primeira parte foi registrada em Abbey Road. Depois de uma interrupção, onde estenderam a produção no Olympic, os Zombies voltaram à EMI para terminar o disco. Naquele ponto, os Zombies já estavam desiludidos com a repercussão indiferente do público depois do lançamento do single Care of Cell 44/Friends Of Mine; com a sensação de que seria mais uma quimera, o Odessey foi concluído numa progressão fulminante.

Já no apagar das luzes, Argent apareceu com algo totalmente diferente do que vinha sendo gravado desde então: Time of the Season. Ao contrário das canções do álbum, Time... parecia mais experimental, mais agressiva, com um teclado que a transformava num liquidificador lisérgico. Porém, naquela altura do campeonato, nem a nova música os empolgou. Blunstone não queria fazer os vocais. Depois de muita insistência, ele topou.

Odessey And Oracle foi lançado em abril de 1968. Toda a beleza do disco, que ia dos arranjos originalíssimos às letras inspiradíssimas, que versavam desde a passagem inexorável do tempo (A Rose for Emily), ao verão, a amizade (Beechwood Park), ao onírico (a apaixonada fantasia de Hung Up On a Dream, uma belíssima canção que roda junto com os versos, numa repetição circular das suas estrofes), ao lirismo ingênuo do primeiro amor (I Want Her She wants Me, This Will Be Our Year), o bucolismo de Brief Candles e a dramaticidade cênico-fantasmagórica de Butche’s Tale — que desaguam na pororoca psicodélica de Time Of The Season, que cria um contraste e uma profundidade sonora perfeita às composições mais suaves do disco.

Em Odessey, os Zombies se tornaram o perfeito exemplo de que talento não é suficiente. Como eles, muitas outras bandas experimentaram o fracesso no ápice de suas qualidades musicais. Esse (outro) paradoxo, quase um estereótipo no mundo do rock — eles não foram os primeiros e não seriam os últimos a serem incomreendidos — faltava um empurrãozinho...

— Vocês não querem lançar o Odessey nos Estados Unidos? — perguntou Kooper.


A proposta era irrecusável. Havia apenas dois problemas quase incontornáveis. O primeiro é que eles teriam que custear o trabalho de mixagem em estéreo, já que o álbum havia sido lançado na Inglaterra apenas em mono. O segundo: as sessões do disco haviam exaurido todo o estímulo do quinteto em continuar. Argent já havia criado uma nova banda. Mesmo assim, eles resolveram levar a cabo sugestão de Al.
Torraram dinheiro que eles não tinham para fazer, também de forma independente, já que o contrato deles com a CBS britânica já havia acabado. Kooper levou os masters para a América.

Como se costuma dizer, se o final foi triste, é porque não era o final ainda. O verdadeiro final sempre deverá ser feliz. E esse foi o do Odessey And Oracle. Kooper leva todos os méritos: ele insistiu para que o todo poderoso da Columbia ianque, Clive Davis, o lançasse.

Mesmo que o disco saísse por uma obscura subsidiária da CBS, a Date Records. O primeiro single foi Butcher’s Tale (a gravadora apostou na temática pacifista na letra). Mas o faro de Al estava certo; Time of The Season era a pièce de resistance do vinil. Quando saiu em compacto nos Estados Unidos — um ano depois do lançamento britânico, ela foi catapultada ao topo das paradas.

Contudo, a verdadeira pátria de Odessey And Oracle seria a posteridade. O tempo cuidou de apontá-lo como um dos pináculos do pop rock dos anos 60: um trabalho à altura dos melhores momentos dos Beatles e dos Beach Boys. Passados mais de quarenta anos, a obra-prima dos Zombies soa cada vez melhor.



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