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quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Elis & Tom


A capa




O encontro histórico entre Tom e Elis foi o final feliz de um longo e tortuoso episódio que os separou dez anos antes, em 1964, desde os testes para a produção do disco Pobre Menina Rica, de Carlos Lyra, como trilha sonora da peça de mesmo nome. Jobim era co-produtor. No fim, ele a refugou em favor de Dulce Nunes. A alegação, segundo as más línguas, era a de que o compositor teria antipatizado com os modos dela. Verdade ou mentira, ficou a história de que a “Pimentinha” fora dispensada por ser “muito caipira”.

Anos depois, a história não se dissipara. Ele foi questionado sobre o assunto, e negou tudo, e disse que já tinha o nome de Dulce em mente, antes dos testes. Mesmo assim, ela levou muito tempo para se refazer daquele veto, embora cantasse muita coisa de Tom e Lyra no “Fino da Bossa”. No ano seguinte, a gauchinha faria contrato com a Philips, no calor da hora da suas apresentações no Festival da Canção da TV Excelsior, quando elis venceu com “Arrastão”. No mesmo ano, ela lançava seu primeiro disco pelo selo, Samba eu Canto Assim.

O problema é que Elis e Tom tinham ninguém menos que Ronaldo Bôscoli em comum, já que, na época, ela era casado com o conhecido autor de “Lobo Bobo”. Pois Bôscoli acabou servindo para aplacar ressentimentos e quebrar o gelo entre a maior cantora e o maior compositor do Brasil. O resultado aconteceu em 1969, quando a cantora resolveu registrar um tema de Jobim em disco (“Wave”). A partir de então, ele seria notório freqüentador de seus álbuns. Dois anos depois, Roberto Menescal tocou para Elis a mais nova criação de Tom: “Águas de Março”. Ela gostou tanto que a incluiu em seu disco posterior. Foi quando brotou em sua mente a idéia de fazer um álbum-encontro, só com canções de Jobim. Em 1974, quando Elis, separada de Bôscoli há dois anos e re-casada, agora com César Camargo Mariano, fez dez anos de casa na Philips, a gravadora lhe deu o presente uma sessão de estúdio com Tom em Los Angeles, onde o maestro então vivia, junto com a turma de “exilados” da “brazillian” jazz West Coast: Aloysio de Oliveira, Moacyr Santos, e Laurindo de Almeida.

Apesar do choque de gerações inicial, as coisa foram se arranjando. Elis partiu com uma lista de quinze músicas favoritas, dentro de um repertório de vinte e cinco números que o compositor havia sugerido. Juntos, eles chegaram a um termo no tocante ao repertório, amalgamando sucessos com canções menos conhecidas. O meio termo era a sobriedade das cordas que Tom utilizaram em produções de Creed Taylor (Verve) um tanto amerizanizadas, como Tide com a modernidade nada ortodoxa de teclado guitarra e contrabaixo elétrico, por parte de César Camargo Mariano. Os arranjos ficariam a cargo dele, em cima de indicações de Jobim (Mariano se baseou no arranjo original de “Corcovado”, por exemplo), que participaria em suas próprias com vocais, flauta e piano. A batuta seria de Bill Hitchcock, e que daria o toque norte-americano na sonoridade do álbum. Foi esse “choque de gerações” e a diversidade de músicos durante as gravações (entre eles, Oscar Castro Neves) o responsável pelo primoroso ecletismo do disco.

A Trama relançou o disco, há coisa de dez anos atrás, em versão remasterizada em SACD. Para o trabalho de reconstituição do álbum, realizado em Los Angeles, César Camargo Mariano refez todo o caminho anterior, faixa a faixa. Primeiro, ele se debruçou diante da matriz do disco, a fim de digitalizar a fita analógica, com o cuidado de não desgastar mais o tape, transferindo o material para uma fonte eletrônica. Finda a primeira parte, ele descobriu diferenças entre o elepê de 1974 e os tapes, principalmente com relação ao acabamento nas mixagens, cortes mal feitos ou fades bruscos (aquele lance quando a música vai baixando). A outra seção curiosa eram os deliciosos ruídos de estúdio, como contagens, falas, risadas, versões alternativas (os famigerados outtakes) — uma espécie de “mania” típica de fã, mas que dão um toque de realismo ao disco. A verdade é que, de certa forma, hoje não existe tanto a preocupação em “limpar” as gravações nos discos, e a inclusão desses traços é muito comum em reedições de velhos discos de jazz.

César Camargo pôde desmontar a desgastada fita de áudio de uma polegada, abrir os oito canais das gravações originais e redistribuir todos instrumentos e vozes no sistema de “surround”. Curioso é que tal sistema demonstra perfeitamente que repassar a fita analógica para o disco digital serve apenas para conservação. Para um material histórico, é quase jogar pérolas aos porcos — o velho “AAD”, onde gravadoras se limitam a fazer uma “fotocópia” sonora do tape do velho vinil. Para o ouvinte que já conhece o disco, as faixas estão mais longas, já que a edição foi refeita. E em alguns casos, o tempo de algumas canções foi aumentado. O ofício de recuperação prescinde do fator artesanal e do arqueológico para chegar a um resultado digno de ser lançado em compact-disc. E o resultado é incomum. Pelo menos, para os puristas e os fetichistas de arranjos minimalistas, o salto para o “surround” é maior do que o do elepê para o CD. Além de “puxar” os instrumentos para o ouvido, a muicalidade separa totalmente as respectivas texturas sonoras, na verdade, jogando o ouvinte (principalmente colocar os fones-de-ouvido) dentro da gravação, cara a cara com Elis Regina.

Como não poderia deixar de ser, Elis & Tom foi produzido pelo Aloysio de Oliveira, como nos bons tempos da Elenco, quando registrou muitos outros encontros históricos, como Caymmi e Vinícius. No repertório que entrou para o estúdio, constam pérolas como a já citada “Águas de Março”, o cavalo de batalha de Elis. As velhonas “Corcovado”, “Só Tinha que Ser Com Você” (com e Aloysio) , “Brigas Nunca Mais” (com Vinícius, do Chega de Saudade, de 1959), “Fotografia” (velho sucesso com Sylvinha Telles e um dos primeiros êxitos de Jobim), “Inútil Paisagem” (gravada originalmente pelo sexteto de Sérgio Mendes, nos anos 60), a valsinha alegre “Chovendo na Roseira”; a egotrip “Retrato em Branco e Preto” (a melhor do disco), e “Triste”. As duas últimas seriam “copiadas” por João Gilberto para o Amoroso, de 1977.

Já o outro “lado” do disco reside na delicadeza dos verdadeiros hai-kais sonoros, de temas menos conhecidos de Tom, porém não menos inspirados. Como a langorosa “Pois É” (com Chico Buarque), “Modinha” (com Vinícius) só com arranjo de cordas de Hitchcock, “O que Tinha de Ser” e uma prosódia em cima do “Soneto da Separação”, de Vinícius de Moraes, com um dramático arranjo de cordas ligeiramente wagneriano, estilo “Tristan Und Isolde”. No novo lançamento, constam dois “outtakes”, ou sobras de estúdio: a versão original de “Fotografia”, bastante diferente da que saiu no elepê de 1974 (que foi regravada no Brasil). A primeira gravação soa “moderna” demais, e demasiadamente moldada com bateria. A outra surpresa do disco é Elis cantando “Bonita” (“What can I say/To You/Bonita?”), que Tom havia gravado no seu A Certain Mr. Jobim, mas que a cantora preferiu não incluir, por discordar do resultado final e de seu sotaque na letra.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Vinícius, Baden, Haig & Haig


Os Afrosambas


Diz a lenda que tudo começou na boate Arpége, no Leme, Zona Sul do Rio. O poeta Vinícius de Moraes foi a esta conhecida casa noturna dos tempos da saudosa boemia bem vestida das noites cariocas do tempo da Bossa Nova prestigiar o velho amigo, Antônio Carlos Jobim, quando descobriu, pálido de espanto, o talento jovem e ligeiramente desconhecido de um exímio violonista de Varre-e-Sai, que atendia pelo curioso nome de Baden Powell de Aquino, e que fazia algum sucesso pela voz de Lúcio Alves, com o seu “Samba Triste”, em parceria com Billy Blanco.

O poetinha ficou impressionado com o estro do rapaz. “Vi aquele molequinho entrar para tocar com a orquestra — era o Badeco” — contou, certa vez. Como se não bastasse a qualidade do rapaz como intérprete, impressionava ao então embaixador brasileiro em Montevidéu o ecletismo do moço, que ia de “My Funny Valentine” a “Estúpido Cupido”. Então o célebre autor do “Operário em Construção” fulminou o garoto com a proposta de fecharem ali mesmo uma parceria musical.


O violonista ficou tão assustado com aquele convite à queima-roupa que, na primeira oportunidade, sumiu do mapa.

Outras lendas dão conta que Baden e Vinícius se conheceram através de Silvinha Telles, na boate Jirau; outros afirmam que foi através de um amigo comum, o empresário Nilo Queiroz, que reuniu a dupla no seu apartamento, na Avenida Atlântica. Depois de tocar quase toda a obra de Villa Lobos no pinho, o poeta lhe fez o pedido. Apesar de fortuito, como são todos os enlaces (a vida é a arte do encontro), a verdade é que daquela parceria saiu um grande cancioneiro, que compreende pelo menos cerca de cinqüenta números, que vai desde “Berimbau” e “Samba em Prelúdio”, desde então clássicos da Bossa, até a série de músicas inspiradas no folclore afro-brasileiro, que foi tardiamente reunida em um disco conceitual, em 1966, pelo mítico selo Forma, de Roberto Quartin, sob o singelo nome de Os Afro-sambas.

Convite aceito, Badeco se mudou para a casa de Vinícius, e produziram uma safra inicial de vinte e cinco canções, tudo regado com o melhor uísque escocês. Daqueles serões no Parque Guinle, saíram sucessos como “Consolação”, “O Astronauta” , “Formosa” (gravada por Cyro Monteiro), “Você sobrinho de Nonô”, “Só Por Amor” (esta gravada por Odette Lara pela Elenco), “Samba da Bênção” e “Tempo de Amor”(ou o “Samba do Veloso”).

Mas e os Afro-sambas?

Pouco antes de travar conhecimento do Baden, o “poetinha” ganhou um disco, intitulado Sambas de Roda e Candomblés da Bahia. Em pouco tempo, aquele despretensioso bolachão transformaria o criador da “Balada das Arquivistas” e do “Orfeu da Conceição” no “branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô”. Aqueles temas baianos o impressionaram, ao mesmo tempo em que o próprio Baden rumava à este mesmo caminho, quando fora apresentado ao capoeirista Canjiquinha que conduziria Badeco a terreiros, rodas de capoeira ao mesmo tempo em que lhe apresenta os sagrados cânticos do candomblé.

O poeta se assomara pelo místico; Baden, pelas novas harmonias.


À parte, naqueles três meses, estiveram enfurnados compondo e secando vinte caixas de uísque Haig (trazidas pela mala diplomática). O ciclo de canções temáticas eram o amálgama daquele estado de transe místico provocado pelo porre, mais o exótico Sambas de Roda e Candomblés da Bahia (presente de Carlos Coqueijo, amigo do poeta) e a influência do maestro Moacyr Santos (“tu que não és um, és tantos”, como diz o “Samba da Bênção”), que era professor do violonista. Após muito ouvirem e assimilarem os temas, eles começaram a compor.

Todas vinham de parto normal, bonitas e risonhas: “Bocochê”, “Canto de Xangô”, “Canto de Iemanjá”, “Tempo de Amor”, “Lamento de Exu”, “Canto do Caboclo Pedra Preta”, “Tristeza e Solidão”, “Berimbau” e o “Canto de Ossanha” (certamente é o mais conhecido, e foi lançado em 1966 por Elis Regina no seu programa O Fino da Bossa , depois lançada em compacto, no mesmo ano).

Contudo, o projeto do álbum, com a série de temas afro, ao contrário das demais canções, que logo se tornariam standards da MPB, foi parar na gaveta. Só quatro anos após o encontro etílico-musical no Parque Guinle é que esse ciclo seria registrado em disco pela Forma, de Roberto Quartin.

A Forma era um selo pequeno (como a Elenco), mas os álbuns eram sofisticados ao extremo, assim como os lançamentos, quase que escolhidos a dedo — antes,a gravadora havia lançado Eumir Deodato ( Inútil Paisagem ), Bossa Três ( Novas Estruturas ) e Moacy Santos (o revolucionaríssimo Coisas ). Agora pretendia entronizar a música de Baden e Vinícius.

Em estúdio, Quartin chamou Guerra Peixe para os arranjos, teve a primazia de gravar em disco todos os instrumentos característicos do candomblé (afoxé, agogô, atabaques) com os do samba tradicional. A despeito do intenso zelo na composição das músicas, o registro das canções ganhou um espírito despojado: parece todo ele um registro caseiro e espontâneo (mais tarde, Baden Powell renegaria esta gravação, alegando justamente o fato de que a produção soa precária demais), que lhe empresta um sonoridade única.

Para a sessão, produzida em janeiro de 1966, Baden e Vinícius convidaram o Quarteto em Cy e um grupo de amigos, ou melhor dizendo, de “um coro de músicos amadores”. Compõem o grupo Nelita e Teresa Drummond, respectivamente a então esposa do poeta e a namorada de Badeco. Integram a entouràge vocal ainda Eliana Sabino (filha do escritor), Otto Gonçalves Filho e César Proença, amigos da intrépida dupla, e a iniciante atriz Betty Faria.

O disco - Em “Canto de Ossanha”, Vinícius murmura os versos com tom de súplica, acompanhado do violão, da marcação do aro da bateria e do afoxé, e de Betty Faria na “resposta”, e dos solos de sax barítono e tenor. O coro entra no refrão, junto com o pandeiro. “Canto de Xangô” tem um tema simples, mas que vai sendo desenvolvido por todo o corpo de músicos, e vai crescendo ao longo dos seus seis minutos. Vinícius é quem canta, acompanhado do Quarteto em Cy.


Destaque maior para a percussão e a exposição do tema, feita por Baden. “Tristeza e Solidão”, por sua vez, está mais dentro do espírito da Bossa, é certamente a mais bonita do disco, sem contar o diálogo entre a voz sumida de Vinícius os desenhos vocais do Quarteto.

“Tempo de Amor”, samba tradicional, com grande desempenho de Badeco ao violão, enquanto o baterista Reizinho castiga os couros. Instrumental, a lírica “Lamento de Exu” é outro belo momento do disco, e traz Baden solitário, acompanhado ao longe por atabaques, e por Cybele entoando a melodia. Já “Canto do Caboclo Pedra Preta” é o afro-samba mais afeito ao rótulo, tanto em letra quanto em música. Vinícius apresenta o tema sozinho, depois todos o acompanham, com a percussão em primeiro plano.


A dupla em ação


Novo sincretismo - Produção excelente, em número e qualidade, embora esteja devidamente integrada ao espírito “carioca” do samba que a Bossa Nova catalisou à sua maneira.

Ou seja, a despeito do forte apelo dos temas folclóricos, os Afro-sambas não deixam de ser um produto do que Powell e Vinícius queriam traduzir, isto é, ali se encontra a visão particular do que eles assimilaram e traduziram como tal.

Nesse sentido, o poeta explica, no texto da contracapa do disco, que as antenas de Baden lhe permitiram o “novo sincretismo” de “carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal”. Noutro trecho, ele diz que “nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica”.



Sobre isso, é importante o registro que, talvez desde “Na Pavuna” (com Almirante, em 1930), não se fazia uma gravação com tantos instrumentos rústicos de percussão (atabaques, bongôs, agogôs, afoxé, etc). Outra curiosidade é que as antenas de Baden só realmente travariam contato com as “raízes afro-brasileiras” de fato quando o violonista finamente foi à Bahia, onde passou seis meses e, de lá, voltava com outro sucesso, “Lapinha”, esta, por sua vez, feita sob outra parceria: a de Paulo César Pinheiro.

No entanto, o grande corolário dos Afro-sambas e do encontro do violonista e do poeta foi que, depois daqueles noventa dias, a vida de ambos mudaria para sempre: Badeco deixava de ser aquele modesto garoto de subúrbio, que discretamente tocava no conjunto de Ed Lincoln, e dava as suas “anônimas” canjas no Plaza para se tornar um músico de renome internacional.

Já o outrora versejador místico e diplomata andava a passos firmes rumo a uma carreira (muitos não sabem, mas o bissexto Vinícius estreou em disco em 1932, com “Loura ou Morena” em parceria com os Irmãos Tapajós) como compositor popular.






Publicado no site Rabisco, em 2006. Link nos comentários

domingo, 30 de agosto de 2009

O Disco que Você Merece


O logo clássico

Era uma vez um Bando da Lua que gostava de Bossa Nova. Aloysio de Oliveira (1914-1995), cantor e compositor, estava na berlinda após deixar a direção artística da Philips (hoje Universal). Antes, porém, ele havia deixado o emprego de produtor da EMI-Odeon porque a gravadora estava dispensando todo um grupo de intérpretes promissores como Roberto Menescal, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo e Sylvia Telles em favor de João Gilberto. Na verdade, a gravadora sabia que, cedo ou tarde, as pessoas iriam cansar de ouvir aqueles cantores de voz pequena e de arranjos exóticos e que, além do mais, não tinham nenhuma tradição musical frente ao público. Ele próprio tinha certeza disso, embora não acreditasse que o movimento deflagrado por João Gilberto fosse apenas um modismo passageiro.

Pelo contrário, seu faro indicava que seria possível trabalhar com toda essa gente, porém dentro de um conceito completamente novo. Assim nasceu a gravadora Elenco, selo que se tornaria símbolo da Bossa Nova e de bom gosto musical, e que se primava por lançamentos originais e de alta qualidade artística.

Aloysio foi crooner do lendário regional que acompanhava Carmen Miranda entre as décadas de 30 e 50. A partir de 1942, ele passou a trabalhar como consultor musical, ator e dublador nos estúdios de Walt Disney, assinando a direção musical de desenhos como Alô Amigos e Você Já Foi à Bahia?. Com a morte de Carmen, em 1957, ele retornou ao Brasil, para assumir o departamento artístico da Odeon e da Philips.

Agora, em 1962, Oliveira tinha experiência suficiente para manter a sua própria gravadora. Conhecendo as dificuldades de divulgação e distribuição de discos, sua idéia inicial era de fundar a Elenco como subsidiária de alguma grande gravadora, interessada em trabalhar com um selo temático, como as norte-americanas Prestige e Verve eram especializadas em jazz.

Não poderia contar nem com a Odeon, nem com a Philips, das quais havia se demitido justamente por dispensarem a Bossa Nova de seu catálogo. Procurou a CBS, porém não obteve sucesso.

Decidiu fazer tudo sozinho. Procurou Flávio Ramos, seu amigo e produtor musical, mas acabou ficando sem parceria, tempos depois. Tudo o que Aloysio tinha agora era o seu idealismo e a sua turma de artistas promissores.

Se do estúdio para fora, ele não tinha muito jogo de cintura, colocou todas as suas forças na concepção musical dos discos. Para completar a idéia, ele escolheu o fotógrafo Chico Pereira (Odeon) e César Villela como diretor de arte.

Juntos, o trio foi responsável pela proposta — que muitos julgaram revolucionária — de criar um fetiche gráfico nas capas dos álbuns: fotografias com sombra, três cores (preto, branco e vermelho), espaços brancos para o lay-out “respirar”, letras com formatos e tamanhos comuns, de capa para capa, e um logotipo onde o “N” da palavra “Elenco” era um holofote. O “fetiche visual” das capas marcaria época e provocou uma legião de imitadores.

O estilo também servia como uma espécie de gestalt para os consumidores, que podiam reconhecer um disco da Elenco a milhas de distância. O maior fenômeno, porém, foi o êxito da publicidade involuntária: a Elenco foi a única gravadora brasileira cujos discos eram procurados nas lojas pelo selo. O sujeito chegava no balconista, e perguntava: “tem alguma coisa da Elenco, aí?”. Tinha até um slogan: “O Disco que Você Merece”.

Durante a sua fase áurea, de 1963 e 1966, o selo editou cerca de sessenta títulos, a maioria deles dentro da proposta de gravar e divulgar autores e intérpretes de Bossa Nova e congêneres.

No início, foi difícil de arranjar dinheiro. Em uma questão de meses, a Elenco já estava dando um relativo lucro ao seu idealizador. Porém, o verdadeiro crédito de Aloysio era artístico: “não havia contratos”, confidenciou ele, em depoimento ao jornalista Tárik de Souza, em 1990.

“Os artistas confiavam em mim e no projeto”, disse certa feita Aloysio de Oliveira. Segundo ele, todos os músicos recebiam royalities, que seria bom se os discos tivessem prensagens estratosféricas e vendas idem, o que jamais aconteceu.



Odette e Vinícius: o primeiro lançamento

Havia dois problemas um tanto bizantinos: sozinha, a Elenco só tinha capacidade de distribuir pequenas tiragens de, no máximo, 2 mil cópias – o que hoje seria piada, seria o mesmo que nada. Se tivesse que prensar mais de 10 mil discos, aí não haveria pernas para distribuir os discos fora do Rio de Janeiro.

O destino da gravadora foi selado em seu nascedouro. Se tivesse distribuição garantida só em São Paulo e em mais algumas capitais, com certeza ela teria durado muito mais tempo e chegada a mares nunca dantes navegados. Mas não foi o que aconteceu, a Elenco surgiu para viver no Rio mesmo. O catáçogo depois seria relançado em parte, quando o selo foi adquirido pela Companhia Brasileira de Discos, a partir de 1967.

Por outro lado, a maioria dos remanescentes da Bossa Nova havia migrado para a Philips que, com o tempo, seria a gravadora que divulgaria a maior parte dos intérpretes de MPB. A Philips também havia tirado de Aloysio o seu maior sucesso, que era Nara LeãO; foi o tiro de misericórdia. Por sua vez, a Bossa paulista estava toda na RGE, como Alaíde Costa ou Edson Machado.

A Elenco, que não tinha divulgação, agora não tinha mais nem elenco. E o verdadeiro mercado promissor, e que consumia aquele tipo de música, agora era mesmo Europa e a América.

Com o tempo, a marca “Elenco” foi adquirida pela BMG Ariola, que chegou a lançar discos com o selo, embora não houvesse nenhuma relação com a Elenco original, enquanto os fonogramas foram parar na Philips. Já na era do CD, em 1991, a Polygram, novo nome da Philips, relançou os álbuns mais importantes do selo, com som remasterizado. O projeto ganhou nova edição em 1996, dessa vez com capas novas, fato que desagradou muita gente. Hoje, todos esses discos estão novamente fora de catálogo, esperando que alguém os reedite.

erm seu pouco tempo de vida, a Elenco lançou poucas coletâneas. A mais interessante e representativa do seu catálogo chegou a ser prensada em estéreo, na época. A Kaleidosicópio é um pequeno porém interessante exemplo da produção do selo nos seus tempos áureos. Começa com Garota de Ipanema, do primeiro LP de Tom Jobim,que foi lançado nos Estados Unidos pela Verve, com o nome de Composer Of Desafinado; Você e Eu, com Sylvinha Telles e Baden Powell no violão; Berimbau com o poetinha Vinícius, numa interpretação singular; Maria Moita com Nara, no disco que fez o morro descer para a Avenida Atlântica; Rio, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, executado pelo próprio Menescal, com seu conjunto, do LP Surfboard; Lennie Dale, o homem que "inventou" Elis e Simonal, do seu álbum ao vivo, cantando uma versão particularíssima (misturando Inglês e Português) de Corcovado; Maysa (também ao vivo), derretendo corações com Fim de Noite, do Chico Feitosa, a melhor da coletânea; Sérgio Ricardo, do disco Sr. Talento, com a existencislista A Fábrica; Baden ao violão, com o Samba do Avião, do LP À Vontade, de 1963; Lúcio Alves se rendendo à Bossa Nova com outro clássico da dupla Menescal-Bôscoli, Ah, Se Eu Pudesse, com aranjo do maestro Gaya; Só Por Amor, fruto etílico da parceria de Baden e Vinícius, na performance deliciosamente prá lá de blasé de Odette Lara. Por fim, Chris Connor ao vivo, com I Concentrate On You (que Sinatra gravaria com Jobim, em 1967). Detalhe que a introdução de I Concentrate é similar que Tom Jobim criou para Se É Tarde Me Perdoa, do segundo disco do João Gilberto, O Amor, o Sorriso e a Flor, de 1960.

Link nos comentários e créditos ao Zeca Louro, do Loronix, que foi quem ripou o vinil.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Joaozinho da Bahia

Ou as peripécias de um curioso músico baiano pelas noites de Porto Alegre

No começo da década de 50, o melhor conjunto vocal em terras brasileiras se chamava Quitandinha Serenaders. O grupo nasceu pelas mãos do lendário produtor musical Carlos Machado, e era formado, em sua maioria, por gaúchos. Ele os batizou assim quando elas cantavam no também lendário Hotel Quitandinha, em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, no tempo em que o estabelecimento era um cassino (os cassinos foram fechados durante o governo Eurico Dutra, em 1946). O fim da jogatina transformou o fumacento cassino em um hotel sóbrio. O conjunto deixou Petrópolis rumo às boates do Rio de Janeiro, mantendo o mesmo nome.

O grupo era formado pelos gaúchos Luís Telles, os irmãos Paulo e Alberto Ruschel (ator do filme O Cangaceiro), Francisco Pacheco e Luís Bonfá (pai de Marcelo Bonfá e autor de clássicos como Gentile Rain e Manhã de Carnaval).

O líder era Luís, homem bondoso e timorato. Morando na capital federal, Telles participava do ambiente musical daquele tempo, da boemia carioca e, como não poderia deixar de ser, a rádio Nacional. Também conheceu grandes figuras da época: Assis Valente (Brasil Pandeiro), Paulinho Tapajós, o estreante João Donato (de A Rã) e Bororó, entre outros.

Um dia, ele conheceu um jovem de vinte e quatro anos, chamado por todos como Joãozinho da Bahia. Joãozinho era um guri contemplativo, muito sensível, tinha excelente memória musical e tocava violão. Através de amigos, descobriu que o rapaz não tinha dinheiro, nem trabalho e poucos amigos.

Andava pelas boates de Copacabana, mas não entrava nelas (não tinha dinheiro). Ficava na calçada mesmo, cabelos quase caindo nos ombros, barba de semanas e roupa amarfanhada. Não podia voltar para casa, não conhecia ninguém que morasse em outra cidade.

O músico dos Serenaders descobriu também que o estado de Joãozinho era devido ao uso constante de maconha, que era fartamente distribuída pelas noites cariocas. Decidiu tirar o menino daquela situação terrível, levando-o para conhecer os ares de Porto Alegre, da próxima vez em que fosse desembarcar na capital gaúcha.

Também convidou o rapaz para participar do Quitandinha, embora ele nunca fosse realmente um membro do grupo. Também conseguiram para o baiano um teste de voz e um contrato num clube noturno, mas ele recusou ambos, mais por ser tímido e exigente demais.

Acabou ficando todo o começo de 1955 em Porto Alegre. Luís Telles hospedou o guri no luxuoso Majestic (hoje tombado como centro cultural). Tão logo se adaptou ao hotel, Joãozinho começou a chamar a atenção de mensageiros, telefonistas, camareiras, hóspedes e até os proprietários do lugar.

Todos ficaram encantados coma sua fineza e com o seu talento ao arranhar, distraído, um violão. Telles também arrumou apresentações perto dali, no bar Farolito, na mesma rua do Majestic, numa esquina da avenida dos Andradas. Levou o menino também ao Clube da Chave que, na época, era bastante freqüentado por não ser um bordel, como a maioria dos inferninhos existentes na capital.

Com o tempo — e por causa de Luís, todos na cidade o chamavam, simplesmente, de Joãozinho. Um dia, João não quis tocar. O violão emprestado tinha cordas de aço. Aturdidos, fizeram uma vaquinha e lhe arrumaram outro, novamente reprovado pelo jovem baiano. Com o novo “pinho”, desta vez, aprovado pelo guri, Telles levou o músico iniciante por todos os lugares: em programas de auditório, botecos do Mercado Público e o afamado (termo que se dizia então) Clube do Comércio, que era freqüentado pela fina flor da boemia bem vestida de Porto Alegre.

Magérrimo, quase alto, quase médio, já sem aquele cabelo de esquizofrênico e barbas de poeta beat, o baiano dormia muito pouco. Passava o dia no quarto do hotel, tocando violão e comendo bergamota (tangerina). As arrumadeiras do Majestic sempre se deparavam com inúmeras cascas da fruta pela cama.

Tontas, descobriram que se tratava de um padrão: todo dia ele fazia isso. Achavam que o hóspede estava ficando maluco, mas ele explicou, depois.

Ele colocava as casquinhas ali para que as formigas viessem lhe fazer companhia. Todo fim de tarde, vestia o seu único e fora de número (curto demais) casaco (na verdade, um sobretudo Príncipe de Gales emprestado por Telles ao seu pupilo) para se apresentar ou encontrar conhecidos, quando a boca-da-noite se abria nas portas de vai-e-vem dos bares.

Quando precisou de um smoking, lhe conseguiram um — curto também. Ao se ver no espelho, apenas disse:

— Rui Barbosa...

A opinião dos seus ouvintes era sempre a mesma. O jovem demonstrava ser um virtuose em seis cordas, e conhecia uma quantidade exorbitante de músicas — algumas conhecidas, outras nem tanto, em sua maioria compostas por seu ilustre patrício, Dorival Caymmi. Contudo, a platéia não entendia como ele era capaz de descaracterizar as notas coloridas e dissonantes do violão de forma tão singular quanto inédita, naquele lugar.

Alguns especialistas e conhecedores de música, como o pianista Armando de Albuquerque, notaram que ele tocava sob influência de um ritmo que era estranho aos ouvidos brasileiros: parecia um misto de Stravisnky com Be-Bop. Se Joãozinho decidisse tocar uma de suas preferidas, “A Primeira Vez” (Bide-Marçal), sucesso de Orlando Silva, ou “Eu Sonhei que Tu Estavas Tão Linda” (Lamartine Babo), o resultado era algo muito diferente e mais intimista do que as originais. Mesmo criticado, ele conseguiu um fiel grupo de admiradores.

Falando em Orlando Silva, ao contrário do seu ídolo, Joãozinho tinha uma voz diferente do “Cantor das Multidões”, embora ainda guardasse ecos ao que se refere à empostação e os vibratos muito bem cuidados. Sempre precisava de microfone, mas não mudava a emissão de voz, sempre pequena, baixa, calculada, sem emoções exacerbadas, mesmo nos momentos cruciais. Às vezes, arriscava um Augustin Lara (“farolito que alumbras somente mi calle deserta”) arranhando um espanhol incompreensível de tão abaianado.

O acento nordestino do rapaz também era o algo a mais que o transformou numa pequena lenda pelas noites da capital gaúcha em meados dos anos 50.

Tempos depois, o baiano Joãozinho sumiu, de forma tão discreta quanto apareceu pela primeira vez aos olhos do pessoal do Clube da Chave, num longínquo janeiro de 1955. Seus amigos se espantaram com a ausência repentina. Nunca mais se ouviu falar do lendário jovem do nordeste, que encantava a assistência dos botecos de Porto Alegre como um Paganini em voz e violão. Nunca mais se soube que fim tivera o guri de Juazeiro, de sotaque peculiar e de modos esquisitos. Eventualmente, ele aparecia em rodas de conversa, no Largo dos Medeiros, no Centro, em frente à antiga Confeitaria Central. Perguntavam sobre Joãozinho.

Alguém ao ouviu falar a quantas anda o Joãozinho? Nada, ninguém sabia o que aconteceu com ele.

Em meados 1958, alguém jurou ter escutado uma voz parecida com a do violonista baiano. Entrou na loja de discos e reconheceu o mesmo rosto, num disco que fazia o maior sucesso no centro do país. Um grupo de admiradores de Joãozinho se amontoou na vitrine. Ouviam, reouviam, se entreolhavam, e não sabiam se acreditavam: é ele? Pediram para ouvir o 78 rotações, com cuidado. Ao prestarem atenção na batida sincopada do violão, a mesma divisão de frases. Todos foram unânimes. Era Joãozinho mesmo. O que os confundiu foi que o intérprete do disco de selo Odeon se chamava João Gilberto, “com Antônio Carlos Jobim e Orquestra”.


João posando com o pulôver de Ronaldo Bôscoli...

O disco era Chega de Saudade, cujo lado B era “Bim-Bom”, e que lançou a Bossa Nova.



Texto meu publicado pelo site Rabisco, há algum tempo atrás. Aproveito para repostar agora, que faz meio século do lançamento desse disco, que é básico em qualquer discoteca embora, infeliazmente, só possa ser achado na Internet.

Falando nisso, link nos comentários...