segunda-feira, 7 de junho de 2010
Vinícius, Baden, Haig & Haig
Os Afrosambas
Diz a lenda que tudo começou na boate Arpége, no Leme, Zona Sul do Rio. O poeta Vinícius de Moraes foi a esta conhecida casa noturna dos tempos da saudosa boemia bem vestida das noites cariocas do tempo da Bossa Nova prestigiar o velho amigo, Antônio Carlos Jobim, quando descobriu, pálido de espanto, o talento jovem e ligeiramente desconhecido de um exímio violonista de Varre-e-Sai, que atendia pelo curioso nome de Baden Powell de Aquino, e que fazia algum sucesso pela voz de Lúcio Alves, com o seu “Samba Triste”, em parceria com Billy Blanco.
O poetinha ficou impressionado com o estro do rapaz. “Vi aquele molequinho entrar para tocar com a orquestra — era o Badeco” — contou, certa vez. Como se não bastasse a qualidade do rapaz como intérprete, impressionava ao então embaixador brasileiro em Montevidéu o ecletismo do moço, que ia de “My Funny Valentine” a “Estúpido Cupido”. Então o célebre autor do “Operário em Construção” fulminou o garoto com a proposta de fecharem ali mesmo uma parceria musical.
O violonista ficou tão assustado com aquele convite à queima-roupa que, na primeira oportunidade, sumiu do mapa.
Outras lendas dão conta que Baden e Vinícius se conheceram através de Silvinha Telles, na boate Jirau; outros afirmam que foi através de um amigo comum, o empresário Nilo Queiroz, que reuniu a dupla no seu apartamento, na Avenida Atlântica. Depois de tocar quase toda a obra de Villa Lobos no pinho, o poeta lhe fez o pedido. Apesar de fortuito, como são todos os enlaces (a vida é a arte do encontro), a verdade é que daquela parceria saiu um grande cancioneiro, que compreende pelo menos cerca de cinqüenta números, que vai desde “Berimbau” e “Samba em Prelúdio”, desde então clássicos da Bossa, até a série de músicas inspiradas no folclore afro-brasileiro, que foi tardiamente reunida em um disco conceitual, em 1966, pelo mítico selo Forma, de Roberto Quartin, sob o singelo nome de Os Afro-sambas.
Convite aceito, Badeco se mudou para a casa de Vinícius, e produziram uma safra inicial de vinte e cinco canções, tudo regado com o melhor uísque escocês. Daqueles serões no Parque Guinle, saíram sucessos como “Consolação”, “O Astronauta” , “Formosa” (gravada por Cyro Monteiro), “Você sobrinho de Nonô”, “Só Por Amor” (esta gravada por Odette Lara pela Elenco), “Samba da Bênção” e “Tempo de Amor”(ou o “Samba do Veloso”).
Mas e os Afro-sambas?
Pouco antes de travar conhecimento do Baden, o “poetinha” ganhou um disco, intitulado Sambas de Roda e Candomblés da Bahia. Em pouco tempo, aquele despretensioso bolachão transformaria o criador da “Balada das Arquivistas” e do “Orfeu da Conceição” no “branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô”. Aqueles temas baianos o impressionaram, ao mesmo tempo em que o próprio Baden rumava à este mesmo caminho, quando fora apresentado ao capoeirista Canjiquinha que conduziria Badeco a terreiros, rodas de capoeira ao mesmo tempo em que lhe apresenta os sagrados cânticos do candomblé.
O poeta se assomara pelo místico; Baden, pelas novas harmonias.
À parte, naqueles três meses, estiveram enfurnados compondo e secando vinte caixas de uísque Haig (trazidas pela mala diplomática). O ciclo de canções temáticas eram o amálgama daquele estado de transe místico provocado pelo porre, mais o exótico Sambas de Roda e Candomblés da Bahia (presente de Carlos Coqueijo, amigo do poeta) e a influência do maestro Moacyr Santos (“tu que não és um, és tantos”, como diz o “Samba da Bênção”), que era professor do violonista. Após muito ouvirem e assimilarem os temas, eles começaram a compor.
Todas vinham de parto normal, bonitas e risonhas: “Bocochê”, “Canto de Xangô”, “Canto de Iemanjá”, “Tempo de Amor”, “Lamento de Exu”, “Canto do Caboclo Pedra Preta”, “Tristeza e Solidão”, “Berimbau” e o “Canto de Ossanha” (certamente é o mais conhecido, e foi lançado em 1966 por Elis Regina no seu programa O Fino da Bossa , depois lançada em compacto, no mesmo ano).
Contudo, o projeto do álbum, com a série de temas afro, ao contrário das demais canções, que logo se tornariam standards da MPB, foi parar na gaveta. Só quatro anos após o encontro etílico-musical no Parque Guinle é que esse ciclo seria registrado em disco pela Forma, de Roberto Quartin.
A Forma era um selo pequeno (como a Elenco), mas os álbuns eram sofisticados ao extremo, assim como os lançamentos, quase que escolhidos a dedo — antes,a gravadora havia lançado Eumir Deodato ( Inútil Paisagem ), Bossa Três ( Novas Estruturas ) e Moacy Santos (o revolucionaríssimo Coisas ). Agora pretendia entronizar a música de Baden e Vinícius.
Em estúdio, Quartin chamou Guerra Peixe para os arranjos, teve a primazia de gravar em disco todos os instrumentos característicos do candomblé (afoxé, agogô, atabaques) com os do samba tradicional. A despeito do intenso zelo na composição das músicas, o registro das canções ganhou um espírito despojado: parece todo ele um registro caseiro e espontâneo (mais tarde, Baden Powell renegaria esta gravação, alegando justamente o fato de que a produção soa precária demais), que lhe empresta um sonoridade única.
Para a sessão, produzida em janeiro de 1966, Baden e Vinícius convidaram o Quarteto em Cy e um grupo de amigos, ou melhor dizendo, de “um coro de músicos amadores”. Compõem o grupo Nelita e Teresa Drummond, respectivamente a então esposa do poeta e a namorada de Badeco. Integram a entouràge vocal ainda Eliana Sabino (filha do escritor), Otto Gonçalves Filho e César Proença, amigos da intrépida dupla, e a iniciante atriz Betty Faria.
O disco - Em “Canto de Ossanha”, Vinícius murmura os versos com tom de súplica, acompanhado do violão, da marcação do aro da bateria e do afoxé, e de Betty Faria na “resposta”, e dos solos de sax barítono e tenor. O coro entra no refrão, junto com o pandeiro. “Canto de Xangô” tem um tema simples, mas que vai sendo desenvolvido por todo o corpo de músicos, e vai crescendo ao longo dos seus seis minutos. Vinícius é quem canta, acompanhado do Quarteto em Cy.
Destaque maior para a percussão e a exposição do tema, feita por Baden. “Tristeza e Solidão”, por sua vez, está mais dentro do espírito da Bossa, é certamente a mais bonita do disco, sem contar o diálogo entre a voz sumida de Vinícius os desenhos vocais do Quarteto.
“Tempo de Amor”, samba tradicional, com grande desempenho de Badeco ao violão, enquanto o baterista Reizinho castiga os couros. Instrumental, a lírica “Lamento de Exu” é outro belo momento do disco, e traz Baden solitário, acompanhado ao longe por atabaques, e por Cybele entoando a melodia. Já “Canto do Caboclo Pedra Preta” é o afro-samba mais afeito ao rótulo, tanto em letra quanto em música. Vinícius apresenta o tema sozinho, depois todos o acompanham, com a percussão em primeiro plano.
A dupla em ação
Novo sincretismo - Produção excelente, em número e qualidade, embora esteja devidamente integrada ao espírito “carioca” do samba que a Bossa Nova catalisou à sua maneira.
Ou seja, a despeito do forte apelo dos temas folclóricos, os Afro-sambas não deixam de ser um produto do que Powell e Vinícius queriam traduzir, isto é, ali se encontra a visão particular do que eles assimilaram e traduziram como tal.
Nesse sentido, o poeta explica, no texto da contracapa do disco, que as antenas de Baden lhe permitiram o “novo sincretismo” de “carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal”. Noutro trecho, ele diz que “nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica”.
Sobre isso, é importante o registro que, talvez desde “Na Pavuna” (com Almirante, em 1930), não se fazia uma gravação com tantos instrumentos rústicos de percussão (atabaques, bongôs, agogôs, afoxé, etc). Outra curiosidade é que as antenas de Baden só realmente travariam contato com as “raízes afro-brasileiras” de fato quando o violonista finamente foi à Bahia, onde passou seis meses e, de lá, voltava com outro sucesso, “Lapinha”, esta, por sua vez, feita sob outra parceria: a de Paulo César Pinheiro.
No entanto, o grande corolário dos Afro-sambas e do encontro do violonista e do poeta foi que, depois daqueles noventa dias, a vida de ambos mudaria para sempre: Badeco deixava de ser aquele modesto garoto de subúrbio, que discretamente tocava no conjunto de Ed Lincoln, e dava as suas “anônimas” canjas no Plaza para se tornar um músico de renome internacional.
Já o outrora versejador místico e diplomata andava a passos firmes rumo a uma carreira (muitos não sabem, mas o bissexto Vinícius estreou em disco em 1932, com “Loura ou Morena” em parceria com os Irmãos Tapajós) como compositor popular.
Publicado no site Rabisco, em 2006. Link nos comentários
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