sábado, 1 de maio de 2010
Dançando no Escuro
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O saxofonista norte-americano Charlie Parker (1920-1955) gravou dezenas de discos entre os anos 40 e 50 utilizando uma orquestra de cordas. Porém, nenhum se destacou tanto pela qualidade final quanto pela controvérsia criada a partir do álbum Charlie Parker with Strings.
Norman Granz, produtor da Verve foi quem tomou a iniciativa de convidá-lo para uma sessão “camerística”, onde Bird executaria temas conhecidos do grande público.
Ele aceitou prontamente: primeiro porque lhe interessava atingir esse tipo de audiência; segundo, porque ele próprio apreciava música clássica, principalmente Igor Stravinski, e acreditava que, a rigor, no futuro, o seu jazz poderia progredir a um estilo chamado “Third Stream Music”, onde o gênero incorporaria elementos da música erudita européia, passando naturalmente pelo amálgama com o clássico (algo que hoje qualquer um rotularia de “world music” ou coisa parecida...).
Lançado em 1952, ele é até hoje alvo de polêmica: muitos fãs de Bird o entronizam como o vértice de sua carreira de músico, iniciada (mais precisamente de fato) em 1939, quando ele chega à Nova Iorque, e passa a tocar nas big bands de Earl Hines e Billy Eckstine. Já outros, mais puristas e ligados (ideologicamente?) à estética “revolucionária” do Be-Bop — do qual Parker e Dizzie Gilespie são seus máximos expoentes — consideram o disco comercial demais, um retrocesso na carreira do músico e compositor e mais afeito aos apreciadores do chamado “easy listening” (música lounge ou “de elevador”).
A queixa, de certa maneira, (até) fazia sentido. A premissa do Be-Bop, que originalmente era a de “tocar aquilo que os brancos seriam incapazes de fazê-lo” (ou seja, uma música avessa ao massificado Swing de Glenn Miller e Benny Goodman, por exemplo) se desfaz num disco onde Charlie toca como os “brancos gostam de ouvi-lo”. Seria uma rendição ao gosto popular?
Uma traição aos ideais do jazz? A verdade é que, via de regra, esse é o grande dilema de todo músico; fazer música para si ou para o ouvinte? Como estabelecer um critério “paradigmático”, um ideário musical enquanto se faz música comercial?
Quem ouve o nada canônico (ou doutrinador) Parker consegue perceber que ele não abre mão de sua criatividade e complexidade instrumental ao executar solos, mas isso se percebe principalmente em gravações ao vivo (muitas realizadas de forma clandestina). Essa liberdade, que é imanente e visceral ao Bop e é a sua alma.
“Charlie movia-se em círculos enquanto tocava”, dizia Jack Kerouac, seu fã confesso e um dos escritores que o transformou em ícone da geração beat, o tinha como exemplo de “santo desleixado, calçando sapatos de solado grosso para não se desgastar nas calçadas da vida”. Na verdade, era (e sempre será) esse o mito do Parker “subterrâneo”, “hip”, de vida dupla, com o élan fatigado pelas noites loucas do Harlem, diluídas em jam sessions e em doses pesadas de música e heroína.
Era esse estereótipo “romântico” do cavaleiro andante dos becos vadios que parecia render-se à rasteira secularidade do mundo da música ligeira. Ou da música para “agradar brancos”.
De certa forma, ele se cansara daquela vida “subterrânea”. Ou de ser quase um músico alternativo. Foi quando aceitou o projeto de Granz (seus antigos produtores não se interessavam em utilizar qualquer tipo de suíte camerística em gravações). Mesmo relegado ao rótulo de “easy listening”, Bird era um músico de primeira grandeza — e muito mais que um saxofonista de jazz. E Charlie Parker with Strings é mais que um álbum de standards e o cacoete do velho e exuberante improvisador das doidas madrugadas insones e enfumaçadas da 52nd Street.
Além do mais, o saxofonista não tinha restrições de estilo: podia ficar horas e horas (e mais horas) tocando Bach com Perez Prado sem preocupar com rotulações...
Da mesma maneira que Monk, Gilespie e outros de sua geração, Parker se utilizava de canções tão simples, como “White Christmas” ou “Happy Birthday” e transformava-as em cavalos de batalha próprios, em versões criativas e até definitivas. Essa leitura peculiar característica do seu bop perpassa por todas as faixas do disco, como um dionisíaco motivo condutor. À primeira vista, ao ouvinte desacostumado, esses números podem parecer covers como qualquer outro.
Mas basta ouvir o prelúdio que Bird criou para “Just Friends”, para ver que ele estava milhas adiante de qualquer Fausto Papetti. E a edição “crítica” do álbum, com todos os outtakes, dimensionam o trabalho, que originalmente foi lançado num extended play de 10 polegadas.
É exatamente por isso que o “strings” se diferencia da música de Bird: feita para o disco, ela tem todas as contingências e limitações comerciais, com faixas conhecidas em formatos de três minutos, no máximo — mas era apenas um detalhe. E a despeito da liberdade estilística de Parker, casa perfeitamente com a orquestra (acrescida de harpa e oboé) de Jimmy Caroll, que acompanha um sóbrio trio de baixo (Ray Brown), piano (Stan Freeman) e bateria (Buddy Rich).
Ou, como disse certa vez o crítico Joe Goldberg, na época de seu lançamento, “a suíte orquestral é um tapete vermelho para que Charlie possa caminhar”. Com exceção de Mitch Miller no oboé ou no arranjo do piano, todos os solos de Parker são originais e ele sempre reelaborava as cadências (como se pode ouvir tanto nos takes alternativos quanto ao vivo).
O resultado é a justaposição dos solos do bop parkeriano com um romantismo luxuososamente irônico de se escutar, no duelo da sonoridade macia das cordas contra os solos nervosamente pacientes — o clássico bem nascido contra o sax subterrâneo da música negra que, por sua vez, era a voz guia dos loucos estrebilhos daquele sonho americano que se chamava jazz. Alguns temas eternos ficaram mais eternos ainda com Bird. “Autumn in New York”, “Dancin’ in the Dark”, “April in Paris” (com duas versões, uma ao vivo, talvez mais bonita que a de estúdio), “Everyting Happens to Me” (super, super clássico de Hoagy Carmichael e Johnny Mercer), “Laura”, “I’ll Remember April”, “They Can't Take That Away from Me” (George e Ira Gershwin) — enfim, uma bela antologia.
Charlie Parker fez algo novo e diferente e, antes de tudo, algo que adiante de críticas, ele realmente quis fazer, e o fez, da forma mais bela e genial.
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