quinta-feira, 29 de abril de 2010

Chá de Penico


Capa

Quem vê a postura de Rogério Duprat na clássica capa do álbum Tropicália ou Panis Et Circencis (1968) pode se escandalizar com a postura do maestro carioca, vestido como um músico de orquestra, e segurando um vetusto penico como se fosse uma xícara. A antítese do hábito classudo, típico de sala de concerto, e o chiste do “porta-reparo” traduzem exatamente o que ele foi: um happening peripatético.

A parte mais conhecida de seu trabalho como arranjador - e justamente o papel que o notabilizou na história MPB, está em sua notável participação para o movimento tropicalista, colaborando em discos de Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso e Os Mutantes. Porém, o elo perdido de sua discografia, e quem sabe o menos conhecido, está em A Banda Tropicalista de Rogério Duprat.

Lançado em 1968, por muito tempo este trabalho foi renegado pelo autor, principalmente por causa da capa, que ele detestava, por supostamente se prestar como um mero pastiche dos Beatles.

Músico intuitivo, cedo aprendeu a tocar de ouvido. Ainda jovem, entrou na Orquestra Sinfônica de São Paulo. Contudo, para se sustentar, militava no rádio e na produção de discos e trilhas de filmes. Embora arranjador de raiz clássica em sua passagem pelo Conservatório Villa-Lobos, com o tempo Duprat acordou para a música de vanguarda. Sob influência de Hans-Joachim Koellreutter, que trouxe de suas viagens pela Europa do pós-guerra a novidade da chamada Escola de Darmstadt que, por seu caráter cosmopolita, tentava livrar a música do exacerbado nacionalismo (como Wagner durante o Nazismo), entronizado por movimentos totalitários.

Ao mesmo tempo, esse novo modelo fez o maestro carioca deixar o cânone nacionalista de Camargo Guarnieri e se aproximar dos concretistas (Haroldo de Campos, Decio Pignatari) e escrever na revista Noigrandes , no mesmo espírito vanguardista de Boulez e Cage de amalgamar a música da pintura e da poesia.

Música Nova

Junto com Júlio Medaglia e Damiano Cozzela, Duprat descobiu a música aleatória de Boulez e John Cage, ambos adeptos de teorias 'antimusicais', como o uso do ruído (sonoplastia, sons de transmissão de rádios, buzinas, aplausos) e do silêncio (como dizia Cage, do ruído que vem desse mesmo silêncio, como ele expõe em sua 4'33). Juntos, eles criaram o Música Nova, movimento cujo prospecto era acabar com o academismo da música erudita de casaca, para uma concepção mais aberta do gênero, de forma a que o clássico pudesse se relacionar com o popular – algo inconcebível na época. Duprat sentia esse preconceito, tanto que, no princípio da carreira como arranjador, tentava não associar o seu trabalho com o disco do oficio de câmera.

Em parte, o Música Nova seria a ruptura. Na Escola Politécnica da USP, junto com Cozella, Duprat criava com um gigantesco computador IBM 1620. Os happenings que ele fazia quando trabalhava eram elaborados com leitura de jornal, música com eletrodomésticos, o que parecia mais revolucionário do que a própria Revolução de 1964. Com a censura, ele se demite da UNB, onde trabalhava como professor.

Além do mais, como disse Rogério, para quem tinha mulher e crianças, o Música Nova não enchia a barriga de ninguém e ainda os transformava em agentes subversivos, que podiam mandar mensagens a células comunistas através de concertos (com “c” mesmo) de batedeiras e liquidificadores...

Foi nessa época que ele descobriu o rock dos Beatles, primeiro pelos filmes, depois através de uma banda de garagem que tocava no Bexiga, em São Paulo: Os Mutantes. O maestro, que andava a cata de um conjunto de Jovem Guarda, encontra em Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee a melhor tradução do som dos cabeludos de Liverpool.

Por intermédio do também maestro Júlio Medaglia, Duprat soube que Gilberto Gil queria algo mais do que um arranjo comum para apresentar a sua música no Festival da Canção daquele ano. Também cogitou a possibilidade de tocar com um conjunto de rock. Foi quando Medaglia o apresentou a eles. Como disse o próprio Duprat em depoimento a Fernando Rosa e Alexandre Matias, foi a união da fome com a vontade de comer. “Estávamos todos a fim disso aí”, diz ele.



“Não é que eu fiquei dando aula para eles; ao contrário, eu que aprendi pra burro com os Mutantes, com o Gil, com o Caetano, com todo mundo, como fazer uma coisa, que pode ser ao mesmo tempo com uma certa correção, com uma correção que a gente já conhecia, de músicos, e fazer isso, de uma coisa popular e avançada, uma coisa na frente dos Beatles”. Era a gênese do Tropicalismo.

Surge a ... “Banda Tropicalista”


Se Panis Et Circencis logrou êxito como a manifestação musical da Tropicália, Duprat foi o Moisés que realizou a travessia do Mar Vermelho do erudito para o popular. Mais do que experimentalismos e arrojos orquestrais como o do Bumba-iê-iê-Boi de “Geléia Geral” ou a introdução “sideral” de “Não Identificado”, por exemplo. Mais: o maestro carioca tinha como característica a música eletrônica através dos seus princípios instrumentais e o chiste : a sua música era o chá de penico. “Nós tínhamos essa história de misturar (...) músicas, todos os tipos de música, e eu em especial tinha uma predileção por gozar a música, fazer gozação”.

Mantendo o limite da proposta séria de fazer a “nova música”, Duprat criou A Banda Tropicalista como uma inefável incursão pelas paradas de sucesso internacionais (nesse caso, imposto pela Polydor) e temas brasileiros, misturando e reelaborando estilos e gêneros, ou mesmo fundindo-os em pequenos medleys.

Quem conhece tanto o trabalho dos Mutantes quanto os arranjos do maestro nos álbuns de Caetano, Gil e o citado disco-manifesto já está familiarizado o suficiente para entender A Banda Tropicalista não como um mero apêndice , como pode parecer, mas sim como um complemento fundamental à discoteca básica do Tropicalismo.



Duprat não gostou do resultado, embora tenha gostado de algumas faixas. Para ele, a gravadora teria “forçado a barra” desde a arte da capa até à escolha do repertório (um misto de bubble gum hits em arranjos ao melhor estilo “easy listening”). Para quem não sabe da história por trás disso, acreditaria piamente que tudo não passava de mais um 'chiste' do maestro em alternar temas tão dispares como Lamartine Babo e Johnny Rivers, e ao mesmo tempo, soarem tão bem enfeixadas dentro do espírito tropicalista de digerir tudo na antropofagia sonora que defendia o movimento.

O disco:

Judy In Disguise: sucesso de 1967 do conjunto americano John Fred and the Playboys. Pérola do estilo bubblegum (músicas comerciais e, como sugere o rótulo, grudam no cérebro do ouvinte). Na verdade, é paródia de “Lucy in The Sky With Diamonds”, dos Beatles. Fez sucesso suficiente para desbancar os quatro cabeludos de Liverpool das paradas de sucesso por duas semanas (deixou “Hello Goodbye” em segundo), em janeiro de 1968. Duprat consegue colocar uma cuíca na introdução e a insólita buzina de caminhão pedindo passagem. O tema é tratado como uma saborosa gafieira, e serve de introdução (expõe um motivo no clarinete que será retomado mais tarde). O caminhão passa novamente antes do retorno do tema principal, até o fim.

Honey/Summer Rain : “Honey”, tema de Bobby Russell e grande sucesso na voz de Bobby Goldsboro, em 1968 (gravado no Brasil por Moacir Franco como “Querida”, em versão de Fred Jorge). Outra faixa “da gravadora”. Arranjo sóbrio de cordas, cujo tema suerge pela flauta e depois repetido pelas cordas, entremeado por frases de uma viola caipira e emoldurada por harpas. No mesmo arranjo, entra “Summer Rain”, sucesso de 1967 (principalmente no Brasil) de Johnny Rivers.

Canção Para Inglês Ver : obra-prima do humor non-sense de Lamartine Babo (e tropicalista avant la lettre ). Composta em 1931, a música caiu como uma luva para a releitura tropicalista de Duprat e os Mutantes, em tempo de fox, como no estilo de época. Bizarra, humorística e absurda, é uma sátira à entrada de estrangeirismos com o suegimento do cinema falado e a forma peculiar do brasileiro em lidar com isso. Nada mais apropriado. É seguida por “Chiquita Bacana”, de 1949, clássica marchinha de João de Barro e Alberto Ribeiro, sucesso do Carnaval daquele ano, dessa vez ganha versão em ritmo de mambo.

Flying : obscura (e põe obscura nisso!) versão para um tema instrumental do filme Magical Mystery Tour (1967), dos Beatles. Aqui aparece o tema de clarinete de “Judy In Disguise”, procurando o tema principal, até cair na melodia tema, nas cordas. Não difere muito da versão original, inclusive usando o final “cagista” à sua maneira.

The Rain, The Park & Other Things
: Duprat e Mutantes fazendo uma cover comme il fault deste gande sucesso (1967) de outra banda bubblegum pop , The Cowsills (uma espécie de Família Dó-Ré-Mi). Com direito a bucólicas harpas e sonoplastia de chuva idem.

Canto Chorado/Bom Tempo/Lapinha : Três temas da Bienal do Samba de 1968, da TV Record. “Canto Chorado” (Billy Blanco), bela toada que foi defendida por Jair Rodrigues, “Bom Tempo” (Chico Buarque) por Claudette Soares e “Lapinha” (Baden Powell e Paulo César Pinheiro) pela 'pimentinha' Elis Regina – que, aliás, levou o prêmio. Arranjo sóbrio, no melhor estilo das típicas orquestras de festival. Cuícas, agogôs, tamborins, pistom em surdina, num belo trabalho dos sopros.

Chega de Saudade : Tom Jobim e Vinícius de Moraes “in disguise”, transformados em um maxixe gafierado, o fim vira Jovem Guarda, com clarinetes e trombones a la “dixieland”.

Baby : a versão “dupratiana” para o clássico de Caetano e Gil, um misto do (esplêndido) arranjo para Gal Costa no Panis et Circenci s e o de Caetano no seu “álbum branco”.

Cinderella Rockefella: sucesso de 1968, escrito por Mason Williams e Nancy Ames, e gravado pelo casal Esther e Abi Ofarim, que se notabilizaram por cantarem no estilo espalhafatoso dos musicais dos anos 20 (“yodeling”), um típico “rag”. Os Mutantes fazem uma versão similar à original, porém mais original ainda. Incrível, não?

Ele Falava Nisso Todo Dia/Batmacumba/Frevo Rasgado : pout-pourri dedicado à Gilberto Gil, dois temas do segundo disco do autor de “ Geléia Geral”, que invocam a instrumentação do álbum Tropicália , mais “ Frevo Rasgado”, cujo arranjo é semelhante ao de Gil.

Lady Madonna :
outra (deliciosa) versão obscura de “Lady Madonna”, sucesso dos Beatles (1968). Quem é fã dos Beatles (e principalmente dos Mutantes) vai gostar.

Quem Será : certamente a mais tropicalista de todas. Duprat pega um bolerão de Jair Amorim e Evaldo Gouveia (“Alguém me Disse”, “Alguém Como Tu”) e transforma em um mosaico: começa como uma valsa trágica ¾ com o ar soturno, sombrio e comovente das cordas e do trumpete, e depois, dentro do espírito do “chiste” dupratiano, vira uma marchinha com ar de banda de coreto, descambando para uma festa (com sons de platéia). Um resignado clarinetista tenta retomar o tema principal, e um gaiato diz: “péra”, ele tenta de novo, e o gaiato: “péra!”. Ele tenta de novo, e o gaiato diz: “mais uma, mas péra um pouco!”. Então ele recomeça com a banda e todos dizem: AEEEEEEEEEEEEEE”. Depois tudo termina numa grande gafieira, como não podia deixar de ser.



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Um comentário:

Anônimo disse...

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