quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Elis & Tom


A capa




O encontro histórico entre Tom e Elis foi o final feliz de um longo e tortuoso episódio que os separou dez anos antes, em 1964, desde os testes para a produção do disco Pobre Menina Rica, de Carlos Lyra, como trilha sonora da peça de mesmo nome. Jobim era co-produtor. No fim, ele a refugou em favor de Dulce Nunes. A alegação, segundo as más línguas, era a de que o compositor teria antipatizado com os modos dela. Verdade ou mentira, ficou a história de que a “Pimentinha” fora dispensada por ser “muito caipira”.

Anos depois, a história não se dissipara. Ele foi questionado sobre o assunto, e negou tudo, e disse que já tinha o nome de Dulce em mente, antes dos testes. Mesmo assim, ela levou muito tempo para se refazer daquele veto, embora cantasse muita coisa de Tom e Lyra no “Fino da Bossa”. No ano seguinte, a gauchinha faria contrato com a Philips, no calor da hora da suas apresentações no Festival da Canção da TV Excelsior, quando elis venceu com “Arrastão”. No mesmo ano, ela lançava seu primeiro disco pelo selo, Samba eu Canto Assim.

O problema é que Elis e Tom tinham ninguém menos que Ronaldo Bôscoli em comum, já que, na época, ela era casado com o conhecido autor de “Lobo Bobo”. Pois Bôscoli acabou servindo para aplacar ressentimentos e quebrar o gelo entre a maior cantora e o maior compositor do Brasil. O resultado aconteceu em 1969, quando a cantora resolveu registrar um tema de Jobim em disco (“Wave”). A partir de então, ele seria notório freqüentador de seus álbuns. Dois anos depois, Roberto Menescal tocou para Elis a mais nova criação de Tom: “Águas de Março”. Ela gostou tanto que a incluiu em seu disco posterior. Foi quando brotou em sua mente a idéia de fazer um álbum-encontro, só com canções de Jobim. Em 1974, quando Elis, separada de Bôscoli há dois anos e re-casada, agora com César Camargo Mariano, fez dez anos de casa na Philips, a gravadora lhe deu o presente uma sessão de estúdio com Tom em Los Angeles, onde o maestro então vivia, junto com a turma de “exilados” da “brazillian” jazz West Coast: Aloysio de Oliveira, Moacyr Santos, e Laurindo de Almeida.

Apesar do choque de gerações inicial, as coisa foram se arranjando. Elis partiu com uma lista de quinze músicas favoritas, dentro de um repertório de vinte e cinco números que o compositor havia sugerido. Juntos, eles chegaram a um termo no tocante ao repertório, amalgamando sucessos com canções menos conhecidas. O meio termo era a sobriedade das cordas que Tom utilizaram em produções de Creed Taylor (Verve) um tanto amerizanizadas, como Tide com a modernidade nada ortodoxa de teclado guitarra e contrabaixo elétrico, por parte de César Camargo Mariano. Os arranjos ficariam a cargo dele, em cima de indicações de Jobim (Mariano se baseou no arranjo original de “Corcovado”, por exemplo), que participaria em suas próprias com vocais, flauta e piano. A batuta seria de Bill Hitchcock, e que daria o toque norte-americano na sonoridade do álbum. Foi esse “choque de gerações” e a diversidade de músicos durante as gravações (entre eles, Oscar Castro Neves) o responsável pelo primoroso ecletismo do disco.

A Trama relançou o disco, há coisa de dez anos atrás, em versão remasterizada em SACD. Para o trabalho de reconstituição do álbum, realizado em Los Angeles, César Camargo Mariano refez todo o caminho anterior, faixa a faixa. Primeiro, ele se debruçou diante da matriz do disco, a fim de digitalizar a fita analógica, com o cuidado de não desgastar mais o tape, transferindo o material para uma fonte eletrônica. Finda a primeira parte, ele descobriu diferenças entre o elepê de 1974 e os tapes, principalmente com relação ao acabamento nas mixagens, cortes mal feitos ou fades bruscos (aquele lance quando a música vai baixando). A outra seção curiosa eram os deliciosos ruídos de estúdio, como contagens, falas, risadas, versões alternativas (os famigerados outtakes) — uma espécie de “mania” típica de fã, mas que dão um toque de realismo ao disco. A verdade é que, de certa forma, hoje não existe tanto a preocupação em “limpar” as gravações nos discos, e a inclusão desses traços é muito comum em reedições de velhos discos de jazz.

César Camargo pôde desmontar a desgastada fita de áudio de uma polegada, abrir os oito canais das gravações originais e redistribuir todos instrumentos e vozes no sistema de “surround”. Curioso é que tal sistema demonstra perfeitamente que repassar a fita analógica para o disco digital serve apenas para conservação. Para um material histórico, é quase jogar pérolas aos porcos — o velho “AAD”, onde gravadoras se limitam a fazer uma “fotocópia” sonora do tape do velho vinil. Para o ouvinte que já conhece o disco, as faixas estão mais longas, já que a edição foi refeita. E em alguns casos, o tempo de algumas canções foi aumentado. O ofício de recuperação prescinde do fator artesanal e do arqueológico para chegar a um resultado digno de ser lançado em compact-disc. E o resultado é incomum. Pelo menos, para os puristas e os fetichistas de arranjos minimalistas, o salto para o “surround” é maior do que o do elepê para o CD. Além de “puxar” os instrumentos para o ouvido, a muicalidade separa totalmente as respectivas texturas sonoras, na verdade, jogando o ouvinte (principalmente colocar os fones-de-ouvido) dentro da gravação, cara a cara com Elis Regina.

Como não poderia deixar de ser, Elis & Tom foi produzido pelo Aloysio de Oliveira, como nos bons tempos da Elenco, quando registrou muitos outros encontros históricos, como Caymmi e Vinícius. No repertório que entrou para o estúdio, constam pérolas como a já citada “Águas de Março”, o cavalo de batalha de Elis. As velhonas “Corcovado”, “Só Tinha que Ser Com Você” (com e Aloysio) , “Brigas Nunca Mais” (com Vinícius, do Chega de Saudade, de 1959), “Fotografia” (velho sucesso com Sylvinha Telles e um dos primeiros êxitos de Jobim), “Inútil Paisagem” (gravada originalmente pelo sexteto de Sérgio Mendes, nos anos 60), a valsinha alegre “Chovendo na Roseira”; a egotrip “Retrato em Branco e Preto” (a melhor do disco), e “Triste”. As duas últimas seriam “copiadas” por João Gilberto para o Amoroso, de 1977.

Já o outro “lado” do disco reside na delicadeza dos verdadeiros hai-kais sonoros, de temas menos conhecidos de Tom, porém não menos inspirados. Como a langorosa “Pois É” (com Chico Buarque), “Modinha” (com Vinícius) só com arranjo de cordas de Hitchcock, “O que Tinha de Ser” e uma prosódia em cima do “Soneto da Separação”, de Vinícius de Moraes, com um dramático arranjo de cordas ligeiramente wagneriano, estilo “Tristan Und Isolde”. No novo lançamento, constam dois “outtakes”, ou sobras de estúdio: a versão original de “Fotografia”, bastante diferente da que saiu no elepê de 1974 (que foi regravada no Brasil). A primeira gravação soa “moderna” demais, e demasiadamente moldada com bateria. A outra surpresa do disco é Elis cantando “Bonita” (“What can I say/To You/Bonita?”), que Tom havia gravado no seu A Certain Mr. Jobim, mas que a cantora preferiu não incluir, por discordar do resultado final e de seu sotaque na letra.

Um comentário:

Anônimo disse...

http://www.4shared.com/get/VvC-N1BP/_1974__elis__tom.html#isStart=true