terça-feira, 22 de junho de 2010
A Love Supreme *
"Louvação a alguma divindade",
diziam os críticos
Em 1962, em Paris, fugindo de uma incontrolável legião de admiradores, um saxofonista negro escapou de um pub onde havia tocado e surpreendido a todos com a sua música.
Enquanto todos o procuravam para bisar mais um de seus números, ele havia se enfiado numa quitanda, há algumas quadras dali. Comprou duas maçãs. Levou o embrulho no bolso para comer sozinho em seu quarto escuro no hotel. O tímido saxofonista era o norte-americano John Coltrane (1926-1967).
Retraído, seus hábitos circunspectos impressionavam os repórteres, que pareciam não acreditar que aquele homem simples e solitário que dava respostas lacônicas foi capaz de mudar a história do jazz em apenas cinco anos.
Dentro de cena, porém, ele se transformava: era um profeta musical, munido de um sax tenor e uma paleta cheia de cores imaginárias, que iam da fúria doutrinária do be-bop à fina delicadeza quase displicente do cool. Sob os holofotes, o nosso herói frugal se transformava num gigante inexpugnável.
Coltrane nasceu numa pequena cidade da Carolina do Norte, chamada Hamlet. Foi morar na Filadélfia quando era adolescente. Ali ele travou conhecimento com o sax e estudou em dois conservatórios diferentes. Conheceu o rhythm’n blues. Viu Laster Young e Johhny Hodges (o lendário saxofonista de Duke Ellington) tocar. Pouco depois, o vemos como membro da banda do “revolucionário” do bop, Dizzie Gilespie, o maior divulgador do estilo.
Só ficaria famoso quando foi guindado à banda de Miles Davis, já nos anos 50, como o sideman do “pai do cool” em momentos inesquecíveis, como a versão daquele quinteto de Miles tocando versões clássicas de clássicos como “Autumn Leaves” e “Stella by Starlight”.
Já careta, Davis expulsou o jovem John do quinteto, que havia se viciado em heroína. Ocorre que, naquele momento, a papoula era a musa inspiradora de quase todos os músicos de jazz, de Charlie Parker a Stan Getz. Mesmo desempregado, teve talento suficiente para chamar a atenção de Thelonius Monk, que o convidou para integrar seu conjunto.
Foi quando ele teve a sua revelação espiritual. Abandonou as drogas — até o cigarro — e passou a estudar muito cultura e religiões orientais. Também ouviu muita música africana e indiana, numa incansável busca de um ponto de equilíbrio existencial. Aliás, essa procura consumiria o resto de sua vida e carreira. Nesse sentido, Coltrane passou a canalizar todo o tipo de busca e experiência particular na sua música. Mais idéias, mais energia, mais notas, mais acordes, mais tudo.
Com Miles
Até então, ele era apenas um bom solista, influenciado por Dexter Gordon. Alguns o questionavam: achavam Sonny Rollins mais “independente”, com mais personalidade, mas definido como saxofonista do que Trane, que, para seus indecisos detratores, tinha um certo “bloqueio” nas suas improvisações e indecisão quanto ao caminho a seguir. E ele sabia muito bem as suas limitações.
Foi quando Charlie Parker morreu — e toda uma época desapareceu com ele. Agora, com Monk, ele teve que repensar todo o seu talento e se adequar ao estilo do autor de “Round Midnight”.
O que realmente o diferenciava era a sua curiosidade intelectual e capacidade de transpor códigos diversos em seu código musical. No fim de 1957, cheio de idéias, acabou retornando à Miles, desta vez regendo um sexteto. Trane era outro. Parecia mais definido e decidido: as frases saíam do sax tenor exuberantes, subversivas, em torrentes de notas vertiginosas, ásperas, provocativas. Em setembro, ele também já dirigia sessões fonográficas com seu nome.
Nesse mês, veio à lume o primoroso Blue Train (com Lee Morgan duelando com o solo no trompete, Paul Chambers no contrabaixo, Kenny Drew no piano e Phily Joe Jones na bateria). Aqui, Trane demonstrou que arquitetava novos espaços em sua música, fazendo uso de temas condutores que ficavam quase irreconhecíveis sob um congestionamento de frases torturadas, e que cuja melodia se disseminava por toda a banda, intercalando com momentos de total introspecção.
Sua música era alicerçada no dinamismo do be-bop, mas com um fôlego mais amplo e profundo. Com Miles, ele se afirmou num verdadeiro craque, capaz de converter platéias com seus solos e ombrear sus arte com Rollins ou Getz, seus pares de sax tenor. Mais: John chegou a influenciar membros da banda, como “Cannonball” Adderley.
Um Passo à Frente
Mais livre com relação ao seu estilo, ele iria retomar a tradição do jazz em Giant Steps, de 1960. Dentro do código do seu instrumento, nada lhe parecia estranho. Era possível ouvi-lo dialogar com todos os paradigmas do sax, mesmo que, naquela altura, era evidente que ele já havia superado a todos os que o precederam — sem contar os seus próprios músicos.
Ainda assim, Giant Steps não significava uma ruptura. Hoje, sua fórmula até soa como se fosse superada mas, em 1960, parecia algo latente, ardente, inquietante. De mero aprendiz, Coltrane era um mestre que levitava e movia montanhas, tocando em todos os registros.
Extenuado de executar sempre os mesmos acordes simples, John optava cada vez mais pela anarquia sonora. Nesse momento, ele via que deveria dar um passo à frente, mesmo que o seu vanguardismo fosse taxado de carência de técnica. Agora, ele precisava apenas de um bom conjunto, que avalizasse o seu ambicioso projeto musical.
No ano seguinte, encontramos John Coltrane com sua própria banda: um quarteto, formado pelo “irmão” McCoy Tyner ao piano; Jimmy Garrison no contrabaixo e Elvin Jones — um mestre nos ritmos complexos — castigando os couros.
Eles lhe dariam um impulso análogo à Mitch Mitchell e Noel Redding para Jimi Hendrix. O solista é colocado em uma posição ideal, com um baixo contínuo riquíssimo e estimulado pela potência do acompanhamento rítmico. A partir de então, ele passou a tocar também o sax-soprano (aquele que tem o corpo reto, e que marcou época especialmente com Sidney Bechet, o velho mestre de New Orleans).
Apesar de não ser afeito a vibratos, como Bechet, foi com esse instrumento que ele gravou “My Favourite Things”, uma pequena valsa do “My Fair Lady” que se transformou no “cavalo de batalha” de John Coltrane, e que influenciou toda uma geração de músicos — inclusive de rock n’roll.
Falando em rock, um exemplo de como a música “coltraneana” ia além do pequeno e fumacento mundo dos artistas de jazz para chegar aos ouvidos insuspeitos de insuspeitos artistas de gêneros diversos, o guitarrista Robby Krieger, dos californianos The Doors, que mimetizou o formato do solo entre sax e piano na concepção do conhecido e extenso instrumental de “Light My Fire”. O tema chegou às paradas de sucesso, apesar da extensão da faixa, que contava com mais de doze minutos, muito maior e inextrincável do que “It’s Now or Never”, o número 1 de Elvis Presley naquele ano. Santana e John McLaughlin também eram devotos da religião de Coltrane.
Este, por sua vez, chegou a fazer uma versão de “A Love Supreme”. O curioso é que muitos acabaram conhecendo o saxofonista através dessa sincera “homenagem”.
Quando admitiu ter chegado a um modelo elementar para a sua música, Coltrane colocou sua profunda fé religiosa para conciliar o contraditório de viver numa sociedade que segregava negros e os colocava no banco de trás dos ônibus, e que viu um negro e um branco tocarem jazz juntos apenas em fevereiro de 1948, numa apresentação memorável no Town Hall de Nova Iorque, com Jack Teagarden e Louis Armstrong. Trane nunca expressou o que sentia sobre isso, mas era explícito que ele via e sabia de tudo — ele confidenciava em suas canções.
Sua trincheira contra os problemas do mundo era a sua teoria estética, onde ele podia lidar com todas essas coisas. Também foi o saxofonista quem certamente “inventou” a chamada world music muito antes de que alguém pensasse em rótulos. Foi a busca de uma linguagem universal que o fez amalgamar códigos sonoros de várias partes — Oriente, África, Espanha.
Muito antes dos hippies, John ouvia Ravi Shankar, de onde elaborou a sua fase modal. Sua curiosidade intelectual lhe fazia ultrapassar ciclos que, em pouco tempo, transcenderiam as barreiras do jazz.
Em meio à efervescência do rock, “My Favourite Things” fez com que Coltrane se tornasse uma estrela, ganhando mais dinheiro que Miles Davis, tocando algo alienígena aos ouvidos dos jovens de sua época. Logo o jazz, que mais parecia uma música feita para músicos.
Ele hipnotizava suas platéias com seu sax-soprano e sua sonoridade de encantador de serpentes e se transformou em mito — mais ele pouco ou nada se importava. O importante para ele era apenas a sua música. Porém, seus músicos, e boa parte de seu público, compartilhavam daquela sua crença — quase mística. Se antes Coltrane conseguia mover montanhas com sua música, agora ele seria capaz de andar sobre as águas com o estro de seus solos indecifráveis. É notável, ainda hoje, ver a química do lendário quarteto de Trane.
Era algo além de uma execução musical comum.
Um Cosmopolita
Eles estão no palco ou no estúdio, tocando. Mas parecem estar muito longe dali. O piano de McCoy Tyner parecia fazer desenhos nas nuvens com as mãos, para que o sax desenhasse o céu azul a cada síncope do baixo de Garrison. Elvin Jones parecia premeditar cada movimento de Tyner, e eles criavam uma seção que formava o imenso tapete vermelho onde as linhas melódicas de John singravam heróicos, como os argonautas e suaves, como o sol pela vidraça, onde predominavam as chamadas sheets of sound (traduzindo como “folhas” ou “camadas de som”), que se compunham de longas frases de notas rápidas, e que seria uma espécie de marca registrada daquele estilo.
— Durante certo tempo, eu me preocupei com acordes —, disse Coltrane a Jean Clouzet para a revista francesa Cahiers du Jazz.
— Agora, — continua ele — começou para mim o período modal. Se toca muita música modal na África, onde ela tem um destaque extraordinário”, explicou. “Mas, se estendermos o olhar para qualquer país, Escócia, China ou Índia, veremos que é sempre esse gênero de música que se expõe. Existe uma base comum. E é isso o que me inspira como meta — revelou.
Foi dessa pesquisa e dessa fase “cosmopolita” que nasceram álbuns como Ole Coltrane, Africa (com a colaboração de Eric Dolphy na flauta) e Africa Brass.
Um Clássico. Ou melhor "o" apocalipse do jazz
Em 1964, ele começa uma nova fase em sua carreira: a partir daí, com sua larga experiência dentro dos esquetes possíveis no espectro de possibilidades técnico-expressivas e o horizonte cosmopolita de sua linha de pensamento musical fizeram com que ele elaborasse a sua profissão de fé, a sua liturgia sonora: A Love Supreme.
Obra-prima por excelência, momento único da música. Como se fosse um missal de notas e sons, o álbum é dividido em quatro partes — Aknowledgement, Resolution, Pursuance e Psalm. Uma execução sagrada e secular, algo como uma Missa Solemnis, segundo Coltrane. Mais que um jazzista, para os críticos, Coltrane era um pregador sem palavras, ou por outra: sua palavra se valia da linguagem jazzística no sentido de uma “panevangelização” de sentimentos elevados através da música.
Os temas tecnicamente já expõem a nova realidade modal. Como apregoaram os críticos, uma louvação a alguma divindade, onde o poder de Deus pode também ser ouvido como uma afirmação do poder criativo da humanidade. De qualquer maneira, a sua visão mística já estava instaurada, de tal arte que seria um componente constante na carreira de Coltrane até o fim de sua carreira. Como disco, A Love Supreme bateria todos os recordes de vendagem para um gênero tão “difícil” e o seu alcance de público foi algo inimaginável, transcendendo a esfera dos meros diletantes da sua música.
Acima de tudo...
Mesmo oriundo do bop, ele já trazia em si a semente de uma partitura aberta, sendo um precursor do free jazz antes de seu papa, Ornette Coleman, e um membro do gênero com Ascencion, quando se une a músicos “free” como o baterista Rashied Ali, os saxtenoristas Archie Shepp e Pharaoh Sanders, numa orgia sonora de 38 minutos. Sanders foi o sucessor de Eric Dolphy, que morreu em 1964.
Nesta fase, nos últimos trabalhos de Coltrane, Om, Kulu Sê Mama e Meditations. O primeiro álbum é uma incursão pelo universo indiano (“Om” é uma palavra que designa divindade); Kulu..., de raiz africana, traz ênfase na parte rítmica, onde John faz uso de mais um baterista (Frank Butler). Meditations, seu canto de cisne, é um missal composto de notas musicais.
Aqui, a forma como ele evoluiu do jazz elementar para a liberdade absoluta de criação. Ascension é sua segunda obra-prima desse período, quando Trane viaja para além da harmonia tonal, e sua música se torna uma partitura aberta, às raias do impressionismo abstrato.
Blue Train
Os registros fonográficos posteriores de John Coltrane se resumiriam a aparições ao vivo, como o clássico Live at Village Vanguard Again. Com o tempo, a única mudança na banda foi a entrada de Alice McLeod — segunda esposa do compositor — no lugar de McCoy Tyner. Porém, as coisas mudariam a partir de então: durante uma excursão japonesa, em fins de 66, Trane começou a sentir dificuldades de andar. Mesmo doente, ele se recusou a ser internado.
O problema continuou, entre alguns show esporádicos e sessões de gravação, até julho de 1967, quando ele realmente teve de ser conduzido a um hospital em Long Island. O diagnóstico: infecção hepática aguda.
Morreu um dia depois, em 17 de julho. Amigos disseram que, na verdade, foi sua timidez quem o matou. Ele não teve coragem de pedir ajuda a qualquer médico e, quando foi compelido a tal, era tarde demais.
Coda
Para Coltrane, que havia colocado o gênero que nasceu nos tempos de Buddy Bolden e dos creoles de New Orleans num patamar espiritual, segundo alguns de seus amigos, restava apenas ultrapassar a última porta. Sua morte — em pleno auge — foi certamente a maior perda no mundo do jazz depois de Charlie Parker. A diferença entre ele e “Bird”, porém, estava na simplicidade e o caráter sóbrio, taciturno e introspectivo de sua atitude como homem e músico.
Sobre este aspecto do compositor, escreveu o crítico André Francis: “em tudo a vida de John Coltrane é exemplar. Nenhum escândalo, nenhuma fraqueza, quase nenhuma anedota frívola: música, isso sim, acima de tudo”.
Blue Train (Blue Note, 1957)
1. Blue Train
2. Moment's Notice
3. Locomotion
4. I'm Old Fashioned (Jerome Kern)
5. Lazy Bird
A Love Supreme (Impulse!, 1964)
1. Acknowledgement
2. Resolution
3. Pursuance
4. Psalm
* Texto publicado pelo blogueiro originalmente em 2004, no site www.rabisco.com.br (adaptado)
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