sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

No Tempo do Bumba-Iê-Iê Boi


A capa, feita no Cinema Império, no Rio


— Em 1971, quando eu trabalhava na CBS, eu fui expulso da CBS. Eu trabalhgava como produtor, e umprodutor me expulsou porque eu fiz um disco chamado Sessão das 10. Era eu, Sérgio Sampaio, a Míriam Batucada e o Edy Star, agora Edy, que tá fazendo muito sucesso hoje com esse negódio de andrógino. Esse disco era muito engraçado, não tinha nada de mais, e a própria CBS não gostou. Eu aproveitei uma viagem que o diretor fez para os Estados Unidos e fiz o elepê, custou 23 milhões a produção do disco. Porque a linha da CBS era aquela linha tipo Zé Povinho, eles diziam: "olha, meu filho, isso aqui é uma fábrica de vender ilusões, tem que vender". E aí eu saí da fábrica de vender ilusões, entrei no Iê-Iê-iê realista e fiz o disco. Teve uma música que eu até tive que botar uma harpa egípcia, eu falei que eu queria esse instrumento, e falei com um cara que transava com essas coisas e ele me disse: "não serve uma harpa paraguaia?". Eu disse que queria egípcia, e mandaram vir de São Paulo para gravar uma música só o último acorde na gravação, a música tinha três minutos e 300 compassos, e aí ele botou a harpa no caminhão e trouxe. E depois eu fui para a Philips. Mas o disco não vendeu nada — desapareceu misteriosamente do mercado, ninguém sabe o que aconteceu.

Esse depoimento, que aparece antes da faixa Sessão das 10, do CD Se o Rádio Não Toca (Eldorado, 1994) é um resumo quase irretocável
do que foi uma das experiências mais interessantes da carreira musical de Raul Seixas e conta a história de um dos maiores álbuns de música brasileira gravados nos anos 70 e por que não dizer, de todos os tempos na história da MPB moderna. E isso sem contar que a trajetória de Raulzito pelo rock brasileiro ainda estava começando.

Existem muitas versões da forma como Sessão das 10 foi concebido e as mais apócrifas são as mais interessantes. A verdade é que Seixas tinha um bom conhecimento do mercado musical tanto do Brasil e do mundo e, á medida em que ele era obrigado a lançar e produzir artistas que estavam enquadrados tanto dentro do esquemão das gravadoras naquele Brasil do som dos anos 60 e começo dos 70 — um pop brega-meloso-udigrudi-romântico com raízes recentes na Jovem Guarda com letras domesticadas pela Censura Federal, Raul tinha consciência do que estava acontecendo fora daqui.

Um exemplo tocante era ver que ele gravava artistas como Jery Adriani e Wanderléa e, ligado no rock inglês e americano, ele teve mais ou menos o mesmo choque cultural que Tim Maia teve ao chegar no país, em 1964, e descobrir que ninguém aqui sabia o que era soul music, Smokey Robinson, Marvin Gaye, Sam Cooke. Enquanto nas paradas no Brasil se ouvia Meu Limão, Meu Limoeiro, na América já havia acontecido Capitain Beefheart, Arthur Lee, Janis Joplin, Hendrix, Zappa e toda a turma que resolveu um dia chutar o balde do rock.

Quem iria fazer a Revolução Brasileira? Era o que mais se pensava naqueles tempos paranóicos de AI-5, perseguições políticas, reitores banidos, ensino de cabresto, jornalistas exilados, intelectuais censurados, guerrilhas, miséria e violência social longe da pauta das redações.

Na música, não poderia ser diferente — por uma questão de sobrevivência. Ninguém queria fechar a fábrica de ilusões que era a única forma de expressão vigente. Contestação era uma palavra banida da história.

Em suma, por isso e muito mais, não havia espaço para a estética iconoclasta do rock estrangeiro no Brasil. Aliás, sequer havia espaço para o rock no Brasil — o máximo que o mainstream aceitava e entendia era versão spaghetti: quem fazia rock de verdade acabava caindo na clandestinidade.

Por isso que muito do que foi produzido no gênero longe do esquemão de rádios, tevês e gravadoras se tornou subterrâneo, fora os selos que topavam embarcar em algo do tipo. Exemplo são os Baobás, que foram os únicos a gravar Moody Blues e Love numa época em que covers de iê-iê-ê não podiam sair do paradigma Beatles. Quem ouvia Moody Blues no Brasil de 1969/70?

O mais singular é que, com relação à Raul Seixas, Sessão das 10 é uma espécie de elo perdido entre o tempo do proto-rock dos Panteras e a fase áurea de Raulzito, a partir de Krig-Ha, Bandolo! Além de ser tão subestimado quanto conhecido, já que a CBS, depois que se livrou do "problema" Raul, decidiu impedir qualquer reedição (existe uma, independente, de 1984).

Com relação ao selo, nãopoderia ser diferente: nenhuma gravadora iria aceitar de bom grado uma opera-rock á brasileira (Leno e Odair José também naufgragariam ao fazer algo no estilo).

A despeito do relativo êxito e da repercussãode Panis Et Circencis, nem mercado, nem indústria musical, nem crítica e público brasileiros entenderiam a audácia de Edy, Sérgio, Míriam e Raul: um disco conceitual, muito bem concebido, conduzido e produzido. E naturalmente que, se foi um álbum feito às escondidas, pelas palavras de Raul, ele custou tempo e dinheiro, pelo menos para a pré-produção.

Sessão das 10 é, na linha de Capitain Beefheart e Zappa (e dos tropicalistas), um promor de deboche e crítica social. Num Brasil em que o Rio de Janeiro era o nosso pequeno mundo e um aparelho televisão o máximno da aspiração pequeno-burguesa do Brasil dos anos de chumbo, tanto o entretenimento domesticado, o conformismo, a exaltação à exuberante natureza do Brasil no país da Ordem e Progresso se tornariam o alvoprincipal dos membros da misteriosa Sociedade da Grã-Ordem Kavernista.

Para emoldurar todo o humor cáustico das letras simples e inteligentes, avacalhando com o estabilishment da terra da palmeira, eles inventaram um desfile de todos os estilos musicais típicos do Brasil; dessa forma, Eta Vida, com uma introdução circence, dá a largada, uma marchinha onde a tônica é o dualismo à integrar-se ou não àquele inconsciente coletivo do Brasil, Ame-o ou Deixe-o. Aceitar o conformismo do cotidiano, futebol, diversão na tevê — depois de listar, Sérgio e Raul questionam aquele eldorado e pensam se devem aceitar o estado das coisas ou não (algo que Raulzito retomaria de outra forma, em Ouro de Tolo, por exemplo).

Várias faixas são endadeadas através de vinhetas (ao estilo de Zappa — aliás, um dos pontos altos do disco são, justamente, as vinhetas, engraçadíssimas), que emprestam ao disco a cara de conceitual. A segunda faixa, Sessão das 10, é uma seresta ao melhor estilo Sílvio Caldas, uma instituição secular na MPB da Velha Guarda. Mas na linha paródica, a letra fala de um amor malfadado non-sense — singelo deboche com o gênero dor-de-cotovelo.

Eu Vou Botar Prá Ferver é um frevo cujo refrão é um divertido paradoxo ("eu vou botar prá ferver/no carnaval que passou"). Eu Acho Graça é um cateretê (esse exemplo de versatilidade de dupla Sérgio-Raul mostra que, antes de abraçarem o rock e a contracultura como um todo, eles não subestimavam toda a linguagem musical que gravitava em torno da música brasileira do passado e do presente)com uma letra que mostra as orelhas de burro para quem passa.

Chorinho Inconsequente é outra música com citações à Cidade Maravilhosa (numa descrição de usos e costumes, numa colcha de retalhos da vida carioca), num samba de breque cantado pela paulistana Miriam Batucada, obra-prima tanto letra quanto a interpretação da cantora paulistana. Quero Ir é um baião existencialista no sentido de evasão, de partida, algo recorente no cancioneiro do Norte: a voz de Sérgio Sampaio, a despeito de ser capixaba, parece de um pernambucano de nascença, e cai como uma luva nas músicas com temática nordestina.

Soul Tabarôa, um forró ("soul miusis, hehehe"), é o único cover de Sessão das 10. Composto por Antonio Carlos e Jocáfi e cantado por Míriam, demostra a versatilidade de uma das cantoras mais subestimadas da história da MPB (e um dos seus trabalhos mais promissores naquele momento em que sua carreira ainda engatinhava acabou sendo soterrado junto com o disco). Todo Mundo Está Feliz é uma toada (existenlista no melhor 'estilo acho que não sei', como Eu Acho Graça) cantada por Sérgio (que brinca de repórter de rádio na vinheta: "qual é o tipo de música que você prefere, melodiosa ou barulhenta?"), cujo refrão em coro é uma brincadeira com canções hippie como Let The Sunshine In, do 5Th Dimenson, que passa um júbilo e otimismo aparente, já que a segunda parte.

Aos Trancos e Barancos é clássico desde a primeira audição: ao som so surdo, Raul diz — "Taí, eu sou um cara que subi na vida, morava no morro e agora moro no Leblon". É um sambão jóia (provavelmente o único de Raulzito em toda a sua discografia) onde, no mote do todo mundo está feliz aqui na Terra, ele exalta a felicidade de ter tudo o que quer, num colorido paraíso tropical.

As deradeiras faixas de Sessão das 10, por sua vez, lembram mais do Raul Seixas que estor vir (embora ianda pré-Paulo Coelho): Eu Não Quero Dizer Nada (de Sérgio), cantado por Edy, é um iê-iê-iê afro soul (com a participação especial da tal harpa egípcia de que Raul fala no depoimento) e Dr. Paxeco, de Raul, é uma espécie de Mr. Jones à brasileira: um arquétipo do white collar man, um sujeito que acha que sabe tudo mas está por fora. E o Finale, com a fanfarra inicial se fundindo com os apupos do público, é o Gotterdamerung que joga todo o mosico musical descarga abaixo.

Como Raul disse à imprensa, na época, o objetivo do antes execrado e hoje incensado álbum "dizer absolutamente nada, não acrescentar nada e ser apenas o espelho da nossa crise músical". Por que são contra a máquina de consumo, "principal causa do caos que está formado", fizeram um disco bastante fácil de ser ouvido e consumido". E, no fim, quem fez a Revolução Brasileira foi a patota kavernista.



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4 comentários:

Anônimo disse...

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Jozieli disse...

Parabéns pelo teu trabalho lá no 1001 discos e aqui!

Varotto disse...

Descobri seu blog meio que (completamente) por acaso, e a única pena é que parece que pouca gente conhece (dada a falta de comentários).

Mas quero também parabenizar pelo trabalho e dizer que é o tipo de coisa que eu gostaria de fazer se tivesse tempo e disposição.

Não desanime!

Marcelo disse...

valeu, cara, obrigado!