quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

A Certain Mr. Jobim


A capa




O maestro Antônio Carlos Jobim gostava de afirmar que a sua vida era extremamente monótona. “Não tenho sequer um robe roxo, que melhora a biografia de tantos compositores”, brincava. A alusão, claro, é referente à Richard Wagner que, além do robe, tinha uma vida particular que encheu centenas de livros. Jobim, ao contrário, apesar da brincadeira, queria apenas ressaltar que, ao contrário do compositor do Tristão, a sua música poderia ser mais motivo de discussão do que as coisas que, segundo ele, amiúde saíam na grande imprensa. “O pessoal inventa tanta coisa que no fim você não tem tempo de ser todas elas”, disse. Na verdade, ele sabia que se esse tipo de polêmica lhe investisse de visibilidade a ponto de se converter em vendas em discos, todas elas até seriam bem vindas. Tom Jobim sabia de seu talento, mas não entendia porque, como no caso de Wagner, se discutia mais a respeito dele mesmo do que de sua música.
Como se não bastasse isso, ele ainda era acusado de mistificador. O modismo da Bossa Nova o transformou no profeta do brazillian jazz. O objetivo, é lógico, era desmerecer a obra de um dos maiores compositores brasileiros do Século XX. Fato é que, passada uma década de sua morte, a obra jobiniana ainda é uma reles desconhecida em terras brasileiras. É como se o rótulo fácil e o mero clichê em que a Bossa Nova foi transformada com o tempo impedissem de se avaliar a real importância do artista Antônio Carlos Jobim. O Brasil não inventou nenhum Bach, nenhum Beethoven, nenhum Berlioz, certamente porque o Brasil é a terra da música popular.

Jobim não profetizava nenhuma revolução musical quando começou sua carreira artística, no começo dos anos 50. Pelo contrário: militava pela música em troca de vil metal — tanto que, quando conheceu Vinícius de Moraes a fim de trabalhar em Orfeu da Conceição, ele cometeu a famosa gafe (“vai um dinheirinho nisso?”) ao ser apresentado ao poeta de “O Operário em Construção” por Lúcio Rangel. O curioso é que Tom poderia ser considerado menos revolucionário que João Donato e Johnny Alf, e menos entusiasta do jazz que eles. O samba era a base, e o fundamento era a música de Guerra Peixe e Villa Lobos, Debussy e Ravel. Certo é que esse momento da formação clássica do compositor, assim como os seus anos de peregrinação nos bastidores de gravadoras cariocas ante da celebridade são desconhecidos do grande público, que tem apenas uma visão anacrônica de sua obra.

A relação de Tom com mestres como Villa Lobos renderam episódios tanto simbólicos quanto folclóricos. Mais do que Stan Kenton ou Chet Baker, o autor de “Garota de Ipanema” jamais deixou de citá-los em suas entrevistas. Aliás, talvez ainda falta algum estudo mais aprofundado da influência desse amálgama do clássico brasileiro tipicamente mestiço (como em Villa Lobos) na música de Jobim. Urubu não deixa de ser tributo ao criador das “Bachianas”. Já Radamés Gnatalli, outro mestre, sempre era evocado nas entrevistas de Jobim. Grande era a admiração dele por Gnatalli — tanto que, em seu último álbum, Tom criou um lindo choro intitulado “Meu Amigo Radamés”. Ao citar o amigo, ele sempre o apresentava como um compositor clássico inédito. Assim como o maestro gaúcho, Guerra Peixe ou Villa, todos eram gênios incompreendidos em sua terra.

O folclórico reside nas lembranças de Tom com seus mestres. Um belo momento que mostra a profunda amizade entre o autor da “Rapsódia dia Brasileira” e Jobim é aquele curta em que Radamés toca “Carioca”, de Ernesto Nazareth ao piano, tendo o seu pupilo como espectador admirado. Sobre Villa Lobos, Jobim revelou que, perto de morrer, o autor do “Trenzinho do Caipira” lhe confidenciou que a solução para o Brasil era o Comunismo. Mas faz uma ressalva: “o problema é que, no momento, eu não posso perder um mercado como o dos Estados Unidos”. Riso geral. O problema mesmo é que ele ambos sabiam que o mercado de Villa Lobos era a ária da Bachiana n0 5. Com isso, ele iria morrer de fome aqui. A despeito da raiz popular, a música dele era anti-popular — ou, pelo menos, anti-comercial. Não é um milagre brasileiro: Gershwin também naufragaria como clássico se não se transformasse um autor teatral e de cinema. As próprias canções de Porgy And Bess não se perpetuariam senão como standards de cantores de jazz. Como em Jobim, o Gershwin moreno...

No caso de Tom, a sua única obra que poderia ser considerada “clássica”, a Sinfonia do Rio de Janeiro — feita em parceria com Billy Blanco, que fez o texto — não passa de uma suíte musical que lembra mais o Villa Lobos da trilha sonora de O Descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro, do que uma sinfonia convencional. É uma obra à parte, se comparada com todo o espólio musical de Jobim, porém hoje estaria perto da classificação de lounge. Mesmo não sendo uma criação “difícil”, a Sinfonia do Rio de Janeiro resultaria num grande fracasso em disco (como foi), se o ex-Bando da Lua, Aloysio de Oliveira, diretor artístico da Odeon na época (1956) não tivesse descoberto ali toda a genialidade do futuro papa da Bossa Nova. A influência do clássico (Debussy) e do tipicamente brasileiro embora estilizado (Villa Lobos) e da leveza da canção popular norte-americana (Gershwin, Porter) transformou Jobim num complexo arquiteto de pequenos espaços.

Suas melhores composições revelam traços de todas essas tendências, e de muito mais. A moldura de suas canções mais conhecidas contrastam com o cafona que havia se transformado o modelo empregado brasileiro do tempo dos beleros, que copiava Nelson Riddle na música dos anos 50. Jobim, que era acusado de plagiador, se saiu melhor do que esses meros importadores de música ligeira. Como se poderia acusar a Bossa Nova de importação, sem se esquecer que o Brasil era e sempre foi uma sala mista de estilos importados, do scottsh ao tango? Depreciar toda essa influência na obra de Jobim — acusada de americanizada — seria o mesmo que tornar o Barroco brasileiro em menor no Reino dos Céus. Toda a sua habilidade e universalidade não era fruto de uma mente genial, como no caso de Mozart, mas sim de um amplo estudo, como no caso de Bach, de alguém que é capaz de se projetar em toda a tradição da música e de tudo o que corre à sua volta. É justamente esse fator que diferencia Jobim de todos os outros compositores.

Na verdade, nem tanto assim. Ao contrário de seu mestre Radamés, que ensaiou uma carreira como virtuose do piano e era um compositor essencialmente erudito, mesmo tendo feito carreira mesmo nos bastidores da produção de discos (são dele os arranjos de originais de “Aquarela do Brasil”, com Chico Alves e “Copacabana”, com Dick Farney), Tom aproveitou a verve intimista da Bossa Nova para se tornar intérprete. E mesmo oriundo da raiz erudita, de sua experiência com música popular dos tempos de arranjador (seguindo os passos de Gnatalli) era tão arrojado em suas melodias quanto econômico e conciso em suas letras, como “Outra Vez” ou “Esse seu Olhar” ao mesmo tempo em que é o criador de músicas de dezenas de acordes (“Luíza” tem 31 deles) de fácil comunicabilidade com o ouvinte e, mesmo cheias de dissonâncias, são tão assobiáveis quanto uma ária de Verdi.

Nesse sentido, Tom Jobim foi o bardo de um pequeno mais valioso cancioneiro de cantigas que dialogam com a tradição da música brasileira. Sempre se apontou a Bossa como a antítese do “aboleiramento” que a precedeu — fato esse que, numa leitura particular, pode ser entendida apenas como uma leitura anacrônica, e que não corresponde a uma contextualização da carreira de Jobim. De mesma forma, o compositor acabou sendo tragado pelo rótulo de bossanovista, como se fosse esta a matriz de sua criação, a despeito de obras fora desse modelo, como a citada Sinfonia do Rio de Janeiro. O próprio Jobim nunca se entendeu como ruptura, e formou o seu estilo muito antes da febre jazzística que assolou o movimento encabeçado por ele e João Gilberto, no fim da década de 50. Daí sim, como filha moderna do samba tradicional, a BN teria o seu idílio com o jazz, sobretudo o chamado West Coast, praticado pela Segunda dentição de músicos e compositores — Roberto Menescal, João Donato, Ugo Marotta, Luiz Eça, Sérgio Mendes (antes do Brasil 66), Eumir Deodato, Baden e os irmãos Castro Neves, quando chegariam aos píncaros azulados do mercado norte-americano que Villa Lobos não dispensaria jamais...

E quem avalizou essa nova postura perante a tradição musical do Brasil foi, justamente, o violonista baiano — que, como intérprete, não seria tão radical, porquanto foi, certamente, o primeiro cantor a passar a limpo a sonoridade do passado com sua sensibilidade, ao gravar Bide-Marçal, Ari Barroso, Marino Pinto, Geraldo Pereira e Dorival Caymmi nos seus primeiros discos, como a voz-guia do sonho real de Antônio Carlos Jobim, naquele momento histórico que representou tanto para a carreira de ambos e de todo o Brasil. João Gilberto se recordou daquele momento, numa de suas raras entrevistas: “lembro de Tom na gravação de Chega de Saudade. Ele estava ali, na cabine, e eu no estúdio. Tom estava me olhando, tinha os olhos emocionados, entusiasmados...”. Nada mais brasileiro.

Um comentário:

Anônimo disse...

http://lix.in/cff46788